minha madrinha tinha o condão de adivinhar prendas que me deliciavam. Quando fiz oito ou nove deu-me um livro grande, ilustrado, do Robinson Crusoe. Naquela época já tinha visto várias vezes o Robinson Crusoe na televisão e conhecia a história. Uma daquelas vezes na televisão fora em francês: Robinson pronunciava-se Ro-ban-sôm. As aventuras do Robinson Crusoe fascinavam-me. Fragmentos e coisas de nada das viagens marítimas no séc. XVII vinham nas ilustrações do livro e a minha imaginação povoava-se de piratas, tempestades, naufrágios, ilhas perdidas, antropófagos, amotinados de navios ingleses, &c.. Adorava aquele livro e estimava-o muito bem. No 1.º ano, não sei se por vaidade se por generosidade resolvi — apesar do melhor conselho de minha mãe — levar o Robinson Crusoe para a biblioteca de turma que a professora de Português organizou. Cada aluno devia levar um livro — ela também — e cada um depois escolheria dessa pequena biblioteca improvisada algum outro que não o seu para levar e ler. No fim do ano lectivo todos devolveriam e os livros tornariam ao seu dono. O livro fez um vistaço e suscitou a cobiça; ouvi até a professora: — "Olhem que livro tão bonito, já viram?" — e inchei. A biblioteca não me impressionou: um Tio Patinhas, alguns livros mais infantis da Anita, um dos Cinco e outro dos Sete que já lera e não me lembra já mais o quê. Acabei com um sobre o Edison que foi quem inventou a lâmpada eléctrica, uma novidade para mim (o Edison, não as lâmpadas). E vi o Rui Pires Cardoso arrebanhar o Robinson Crusoe; ele fora da minha aula na primária e confiei no zelo que poria no meu livro. Mas a decepção já me dava arrependimento; acho que sonhara lá encontrar mais livros do género do meu: uma Ilha do Tesouro, talvez. Com o passar do ano a biblioteca esmoreceu. Poucos devolviam o que levaram, talvez porque o não lessem, talvez porque a professora o não estimulasse. E em casa a minha mãe dizia: — "Eu bem te disse. Ainda ficas sem o livro." Com o ano lectivo a terminar fechou-se a biblioteca de turma e os livros tornaram aos donos. Não sei se todos os outros; o meu não. E com o pouco caso que a professora fez, fiz eu um ultimato ao Rui Pires Cardoso: — "À saída vais comigo à tua casa e dás-me o livro. Se não vou lá na mesma e digo à tua mãe. — O Rui Pires Cardoso foi e devolveu-me a medo o livro todo rebentado e com os cadernos mal pendurados na costura. Se não fosse a sua mãe aparecer quando me zanguei com aquilo o Rui Pires Cardoso tinha ficado com a lombada mais maltratada que o Robinson Crusoe. E não sei se o nariz lhe não ficaria pela costura... Isto a propósito do Plano Nacional de Leitura. | |
Ilustrações de Balter in Daniel De Foe, Robinson Crusoe, Didáctica, [s.l.], [s.d]. |
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