Segunda-feira, 29 de Maio de 2006

Perna de Pau

Seguindo mais um tanto na estrada chegamos a um lugar conhecido:

« Para além da linha férrea [...] à dir., a Perna de Pau, um dos sítios mais frequentados das hortas alfacinhas, com o seu registo de azulejos embebido na fachada da casa, a sua nora gemedora e o seu panorama característico de arrabalde lisboeta, onde perdominam o olival e o verde claro das terras de regadio.
   Este local de tradições de boémia e estúrdia de há 50 anos, nele se têm feito desgarradas à guitarra e esperas de touros, com todo o pitoresco destes folguedos.» (1)

Perna de Pau, Areeiro (P.Guedes, c. 1900)
Retiro da Perna de Pau junto ao apeadeiro do Areeiro, estrada de Sacavém, c. 1900.
Fotografia de Paulo Guedes, in Arquivo Fotográfico da C.M.L..

 A explicação do curioso nome é dada por Pastor de Macedo e Matos Sequeira em A Nossa Lisboa; Marina Tavares Dias é quem no-lo diz:

« Quem [...] deu nome à saudosa Orta [sic] da estrada de Sacavém foi a sua proprietária, a obesa Gertrudes, que em 1833 geria aquela locanda dos subúrbios. E a perna perdeu-a ela por via de um tiro de escopeta.
   A dita Gertrudes seria afeiçoada ao liberais e, quando as tropas miguelistas estavam perto dos limites de Lisboa, negou água, no seu retiro, aos soldados. Um miliciano abriu fogo atingindo uma das pernas da Gertrudes. Amputada a perna, foi depois substituída pela de pau.» (2)

Perna de Pau, Areeiro (C.A.Lima, c. 1900) 
Idem. Fotografia de Alberto Carlos Lima in Arquivo Fotográfico da C.M.L..

 A romaria dos lisboetas às hortas começava no primeiro domingo depois da Páscoa e ia até meados do Outono. De Arroios à Portela havia inúmeros retiros: Miguel do Café, José dos Patacos, Basalisa, Tanoeiro, António Cara Larga, Perna de Pau, o António Zé, o Mantas, o Fadista &c. (3).
 Desta Gertrudes, obesa e com uma perna de pau, sabemos pela evocação que os Amigos de Lisboa fazem de Tinop, que fazia o melhor peixe frito, acompanhado de salada de alface que se comia em Lisboa (4). Consta que as pescadinhas de rabo na boca chiavam tardes inteiras na sertã.

Retiro da Perna de Pau, Areeiro (E. Portugal, 1939)
Retiro da Perna de Pau junto ao apeadeiro do Areeiro, estrada de Sacavém, 1939.
Fotografia de Eduardo Portugal, in Arquivo Fotográfico da C.M.L..

 Em 39 já o casal não ostentava a inscrição de azulejo na fachada nem o candeeiro à esquina da Azinhaga da Fonte do Louro. Sinal do que se avizinhava: a compra da quinta da Perna de Pau a José António da Silva para prolongamento da Av. Almirante Reis [i.e. Gago Coutinho] deu-se em 4 de Abril desse ano. Não sobrou nada da quinta. É como diz Marina Tavares dias: Lisboa cresceu além do que jamais se imaginou [e] entretanto parece também ter perdido a alma.
 E os colares de pinhões.


(1) Raúl Proença, Guia de Portugal, 1.º v., Generalidades; Lisboa e arredores, 1ª ed., B.N., Lisboa, 1924, p. 269 [Reed. da Fundação Calouste Gulbenkian, imp. 1991].
(2) Marina Tavares Dias, Lisboa Desaparecida, [v. 1], 2.ª ed.,Quimera, Lisboa, 1987, p.133.
(3) Idem, p. 131.
(4) Olisipo: boletim do "Grupo Amigos de Lisboa", n.º 149, 1986 (agradeço ao Paulo Cunha Porto a informação).

Escrito com Bic Laranja às 16:08
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20 comentários:
De Bic Laranja a 30 de Maio de 2006
«Cheira bem cheira a Lisboa» também diz o rifão antigo. Cumpts.
De José Almeida a 24 de Novembro de 2012
Informação e conjunto fotográfico interessantíssimos. Acabei por me entusiasmar e, consultando a planta de Lisboa de 1904-1911 de Silva Pinto, deu para perceber que as casas que se encontram em segundo plano ao fundo, pertencem à antiga Quinta da Fronteira. Procurei mais e percebi também que logo a seguir a essa quinta e na mesma Estrada de Sacavém mas do lado oposto, existia uma outra, a Quinta de Santo António, cuja casa principal, dependências e logradouros ainda hoje existem! É uma das vivendas da Av. Almirante Gago Coutinho, a 6ª do lado esquerdo para quem sobe em direcção ao aeroporto. Curioso ver no Google Earth o pequeno troço da Estrada de Sacavém faz agora parte do espaço privado da casa, cuja fachada se encontrava alinhada com esta estrada e, por isso, agora ligeiramente desalinhada com a Av. A. Gago Coutinho. Da sobreposição da dita planta com o Google Earth tendo como pontos fixos de referência as antigas construções que ainda hoje se encontram na zona da azinhaga da Fonte do Louro, conclui-se que o antigo retiro Perna de Pau se encontrava situado no atual Largo Cristovão Aires, perpendicular à Rua Gilhermina Suggia. A seguir ao apeadeiro, a Estrada de Sacavém descia em direção a norte entre a atual Rua Guilhermina Suggia e a Avenida Almirante Gago Coutinho.
De Bic Laranja a 9 de Maio de 2014
Certíssimo.
Cumpts.
De Caiê e Pug a 30 de Maio de 2006
não conhecia, mas tudo o que cheira a piratarias, cheira bem!
De Bic Laranja a 30 de Maio de 2006
Não valeu nada a espera... Com três ilustrações idênticas e meia dúzia de larachas reunidas com assaz pouco labor?! Isso e o aparato em pé de página, veja lá se não é só promoção e imagem. Modas! Cumpts. ;)
De Paulo Cunha Porto a 30 de Maio de 2006
Meu Caro Bic Laranja.
Se valeu a pena esperar! Acede-se assim a uma pasta de arquivo completíssima sobre a Gertrudes. É bem verdade que na origem da prótese tosca estava um acto de pirataria: não se nega água a ninguém, menos ainda aos Defensores da Legitimidade. Muito obrigado pela referência e forte abraço.
De Bic Laranja a 29 de Maio de 2006
Folgo que lhe haja agradado. Obrigado pela visita! Cumpts.
De polittikus a 29 de Maio de 2006
Creio que não vale a pena dizer-te o tempo que estive neste blog a ver as fotos antigas de onde moro (benfica). Pois foi tanto tempo que nem eu acreditei... adorei o teu blog.
De Bic Laranja a 29 de Maio de 2006
Faça favor! Fico ansioso. Cumpts.
De Manuel a 29 de Maio de 2006
Um destes dias, se me permite, entronco neste seu post uma outra história. É um sonho. Mas encaixa bem nesta sua apetitosa colheita. Um abraço
De José Almeida a 9 de Maio de 2014
Estive a observando atentamente as três fotos, chega-se à conclusão de que a 2ª fotografia deve ser a mais antiga.
Quando compara com a primeira (de cerca de 1900)verifica-se que pelas alterações entretanto introduzidas na casa (por exemplo, uma nova "boca de incêndio" na parede exterior), o estado de conservação da própria casa, o crescimento dos eucaliptos que se encontram por detrás, etc, percebe-se que a 2ª fotografia deve ser, pelo menos, 10 a 20 anos mais antiga do que a primeira, presumindo-se então que deverá datar do século XIX...
De Bic Laranja a 19 de Maio de 2014
Observa bem, mas, por outro lado, a árvore da segunda fotografia vê-se na primeira imagem dissimulada nos eucaliptos. Não foram estes simplesmente cortados?
A segunda boca de incêndio está em ambas, apenas numa ficou encoberta pelo empregado...
Soma-se o letreiro da Perna de Pau mais degradado na segunda do que na primeira e o lampião no cunhal da casa que foi (re)posto...
A cronologia destas duas aqui é como dizia Camilo de ser Cleópatra a mulher mais bela do Mundo Antigo: a verdade é que não sabemos.
Pode ser que se descubra.
Cumpts.
De [s.n.] a 19 de Maio de 2014
Bem observado também. No entanto eu poderia contrapor que que a árvore que se vê na segunda foto dá ideia de ser um eucalipto que foi parcialmente cortado ou, mais provavelmente, quebrado pelo vento, aparecendo na primeira foto já com ramos altos em resultado do desenvolvimento dos novos rebentos.
O candeeiro que se vê no cunhal também poderia ser o original e não uma reposição.
Quanto ao letreiro, esse sim poderia ter sido repintado na primeira foto por as letras se encontrarem então ainda mais sumidas do que na segundaa foto.
Relativamente às bocas de incêndio, tem toda a razão. Eu não reparei que um dos empregados pode estar a tapar a segunda. Afinal eu não estava tão atento assim...
Como gosto deste tipo de desafios, logo que eu tenha mais tempo disponível, continuarei a minha observação. Caso eu descubra alguma coisa e não se sinta aborrecido com isso, voltarei ao assunto. :)
Cumprimentos
José Carlos Almeida

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