Seguindo mais um tanto na estrada chegamos a um lugar conhecido:
« Para além da linha férrea [...] à dir., a Perna de Pau, um dos sítios mais frequentados das hortas alfacinhas, com o seu registo de azulejos embebido na fachada da casa, a sua nora gemedora e o seu panorama característico de arrabalde lisboeta, onde perdominam o olival e o verde claro das terras de regadio.
Este local de tradições de boémia e estúrdia de há 50 anos, nele se têm feito desgarradas à guitarra e esperas de touros, com todo o pitoresco destes folguedos.» (1)
Retiro da Perna de Pau junto ao apeadeiro do Areeiro, estrada de Sacavém, c. 1900.
Fotografia de Paulo Guedes, in Arquivo Fotográfico da C.M.L..
A explicação do curioso nome é dada por Pastor de Macedo e Matos Sequeira em A Nossa Lisboa; Marina Tavares Dias é quem no-lo diz:
« Quem [...] deu nome à saudosa Orta [sic] da estrada de Sacavém foi a sua proprietária, a obesa Gertrudes, que em 1833 geria aquela locanda dos subúrbios. E a perna perdeu-a ela por via de um tiro de escopeta.
A dita Gertrudes seria afeiçoada ao liberais e, quando as tropas miguelistas estavam perto dos limites de Lisboa, negou água, no seu retiro, aos soldados. Um miliciano abriu fogo atingindo uma das pernas da Gertrudes. Amputada a perna, foi depois substituída pela de pau.» (2)
Idem. Fotografia de Alberto Carlos Lima in Arquivo Fotográfico da C.M.L..
A romaria dos lisboetas às hortas começava no primeiro domingo depois da Páscoa e ia até meados do Outono. De Arroios à Portela havia inúmeros retiros: Miguel do Café, José dos Patacos, Basalisa, Tanoeiro, António Cara Larga, Perna de Pau, o António Zé, o Mantas, o Fadista &c. (3).
Desta Gertrudes, obesa e com uma perna de pau, sabemos pela evocação que os Amigos de Lisboa fazem de Tinop, que fazia o melhor peixe frito, acompanhado de salada de alface que se comia em Lisboa (4). Consta que as pescadinhas de rabo na boca chiavam tardes inteiras na sertã.
Retiro da Perna de Pau junto ao apeadeiro do Areeiro, estrada de Sacavém, 1939.
Fotografia de Eduardo Portugal, in Arquivo Fotográfico da C.M.L..
Em 39 já o casal não ostentava a inscrição de azulejo na fachada nem o candeeiro à esquina da Azinhaga da Fonte do Louro. Sinal do que se avizinhava: a compra da quinta da Perna de Pau a José António da Silva para prolongamento da Av. Almirante Reis [i.e. Gago Coutinho] deu-se em 4 de Abril desse ano. Não sobrou nada da quinta. É como diz Marina Tavares dias: Lisboa cresceu além do que jamais se imaginou [e] entretanto parece também ter perdido a alma.
E os colares de pinhões.
(1) Raúl Proença, Guia de Portugal, 1.º v., Generalidades; Lisboa e arredores, 1ª ed., B.N., Lisboa, 1924, p. 269 [Reed. da Fundação Calouste Gulbenkian, imp. 1991].
(2) Marina Tavares Dias, Lisboa Desaparecida, [v. 1], 2.ª ed.,Quimera, Lisboa, 1987, p.133.
(3) Idem, p. 131.
(4) Olisipo: boletim do "Grupo Amigos de Lisboa", n.º 149, 1986 (agradeço ao Paulo Cunha Porto a informação).
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