Dia de chuva, Lisboa, c. 191...
Joshua Benoliel, in archivo photographico da C.M.L.
Bem garantiu o ministro da espuma do Tejo logo de manhã não ir faltar a água...
José Hermano Saraiva, Três Anjos e um Demónio
(Lendas e Narrativas, R.T.P. 2, 13/2/1996)
Puseram-lhe andaimes...
Av. da República, 55, Lisboa — © 2018
Quem, no advento da I.ª República, seguisse do convento de Arroios pela Rua do Conselheiro Moraes Soares, caminho do Alto de S. João, acharia logo à sua mão esquerda a Horta da Cera, cujo muro comprido tinha a meio um portão mais ou menos coincidente com o actual comêço da Rua de Carlos Mardel. Logo depois entrepunha-se-lhe o muro e as casas da Quinta da Brasileira estreitando a via; estes chãos ocupavam sensivelmente a área delimitada hoje pelas ruas Actor António Cardoso, José Ricardo e Edith Cavell. Por alturas do Poço dos Mouros teria então, ainda à sua mão esquerda, o Retiro do Manoel dos Passarinhos que coincidia pouco mais ou menos com os baixos do actual Largo Mendonça e Costa; este Manoel dos Passarinhos era o tradicional da volta, um castiço com letreiro pintado no frontão da casa a lembrar de não esquecer a vida aos vivos: bons vinhos e petiscos.
Neste pequeno percurso havia no lado oposto, à direita, primeiro a Quinta do Saraiva com os primeiros prédios de rendimento pequeno-burgueses; ao depois, além da Travessa do Caracol da Penha (actual dos Heroes de Quionga) ou talvez do Poço dos Mouros -- era a Quinta do Manuel Padeiro com o seu muro... Quem ao cimo dela parasse e desse meia volta como para ganhar fôlego, mesmo que não tivesse uma mòlhada de romeiros (republicanos?) a morder nos calcanhares, o panorama era assim.
Fotografias:
Retiro do Manoel dos Passarinhos, Poço dos Mouros (Joshua Benoliel, c. 1910; A.F.C.M.L., A74731);
Cortejo ao Alto de S. João, Rua do Conselheiro Moraes Soares (Alexandre Cunha, c. 1910; A.F.C.M.L. A20188).
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Publicado originalmente em 6/VIII/15 às 10h27 da noute com o titulo «Aspectos duma Lisboa irreconhecível».
Sabemos da civilização grega. Os gregos antigos eram muito civilizados, mas em seu redor havia uns povos de rudes costumes, que nem grego falavam; entoavam uma linguagem estranha de bar bar bar. Daí os gregos lhes chamarem bárbaros. «Bárbaro» para dizer gente rude, sem modos ou incivilizada, vem dos gregos. Do grego passou ao latim; Roma conquistou a Grécia, mas é sabido que a civilização grega conquistou os romanos. E os povos incivilizados, das franjas do império, eram, naturalmente, os bárbaros. Como bons selvagens, deram em cobiçar as riquezas da civilização romana e, para a História, a queda do império romano foi o que sabemos: os bárbaros invadiram-no e espatifaram tudo.
Mas isto da civilização e da barbárie tem maneiras de se compor: a História modernamente contada, cada vez mais polida, já não acha bárbaros nenhuns na queda de Roma; ensina correctìssimamente que eram povos germânicos. Soa muito mais civilizado, não vos parece?
Não deixaram estes germânicos de ter espatifado tudo, mas assimilaram o — verniz, digamos — suficiente para olharem os outros como bárbaros — é evidente aqui, a todos, que bárbaros são sempre os outros; como evidente é que só uma civilização demente o procurará negar… — Os germânicos deram em cristãos, como Roma, e é da História ainda não reinventada que, entre a moirama norte-africana que acossou a Europa cristã no séc. VIII havia carradas de berberes: «berbere» é mera corruptela de «bárbaro» como é fácil de ver.
A nossa linguagem portuguesa, tão rica e cheia de História, incorporou as duas: «bárbaro» e «berbere». Como incorporou uma terceira para dizer o outro, o estranho e incivilizado, trazida pelos berberes: cafre.
«Cafre» vem do árabe «kafr» e é simplesmente a maneira de se os mouros referirem aos infiéis, diferentes de si, òbviamente incivilizados ou selvagens.
Os portugueses na sua ronda de África assimilaram esta maneira de os berberes chamarem selvagens aos pretos da Guiné e até a ensinaram a povos altamente civilizados que tomam chá: os ingleses. Claro que os ingleses, que têm mais chá que ninguém, tanto lhe parecem cafres os portugueses como os pretos da Guiné, só os distinguindo um tanto, por conseguinte, dizendo dos portugueses que são os cafres da Europa; uma condescendência fleumática, admito, a quem os ensinou a tomar chá.
Mesa de chá, Portugal, [s.d.].
Mário de novais, in bibliotheca d'arte da F.C.G.
Mapa do estado das estradas em Portugal, A.C.P., 1951.
Mário de Novais, in bibliotheca d'arte da F.C.G.
Perorava o Nicolaço na emissora nacional esta manhã sobre vender a Gulbenkian o seu negócio de petróleo aos chins. Não percebo nada de petróleos nem de negócios da China, mas fica a gente assim, pensando: — Que raio! Não foi o negócio do petróleo que enriqueceu o sr. Calouste Gulbenkian? Não é com ele que se sustenta a fundação, e por ele que é riquíssima?!...
Na Miscelânea cantava Garcia de Resende:
Vimos taes cousas passar
em nosso tempo e idade,
que, se se ouuiram contar,
per mentira e vaidade
se ouueram de julgar […]
Mas era um tempo e idade de grandes feitos…
Outro mundo nouo vimos,
per nossa gente achar,
e o nosso nauegar
tam grande, q descobrimos
cinco mil leguas per mar
e vimos minas reaes
douro, e doutros metaes
no Reyno se descobrir;
mais que nunca vi saber
ingenho de officiaes.
Quando arribou a Portugal, o sr. Gulbenkian, vindo dum mundo antigo a desabar, ainda por cá o ingenho de officiaes sabia de minas reaes douro, e doutros metaes no Reyno se descobrir. Hoje, neste negócio da China, quereria crer eu que ainda fosse isso, mas duvido. O largar o petróleo neste tempo e idade puritanos de mudança nunca vista ou imaginada por Garcia de Resende, cheira-me, tem tudo de ideológico — um eufemismo moderno de crendice; a mesma que ditou à Fundação Gulbenkian tanta pressa em obedecer ao novo acordo ortográfico e em publicar prestes com ele uma monumental gamártica do Português: tudo numa obediência como que de rito; da nova ordem mundial.
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Fotografia: Fundação Gulbenkian, Palhavã, 197… Horário de Novais, in bibliotheca d'arte da F.C.G.
Uma rua de Lisboa publicada na Bibliotheca d'Arte da F.C.G. Olha-se-a e... vou lá agora descobrir onde raios será isto! Uma rua, um cruzamento, de empedrado de basalto em Lisboa; um prèdiozinho de r/c e 1.º andar de platibanda à portuguesa forrado de azulejos de padrão e friso de motivos florais como sobram alguns (poucos) nesta Lisboa também hoje irreconhecível; um r/c e 1.º andar impossível hoje.
Olhando para cá do cruzamento, portas e montras das lojas de arco rebaixado rematadas com frisos, como antigamente, à feição e gôsto das fachadas de bons prédios de rendimento dos anos 20 e 30 e antes das mutilações modernas de bancos e comércio para... para expor a sua mercadoria; duas lojas, assim em Lisboa incerta — na esquina uma sapataria; a de cá, uma drogaria.
A matrícula da furgoneta Goliath é de 1955-56. A fotografia andará pelo fim desses anos 50, não sei. Não descortino onde a scena seja. Nem na seguinte — outra rua de Mário de Novais publicada sem legenda na Bibliotheca logo a par da anterior descortino o lugar. Penso na Luciano Cordeiro até a ampliar…
E eis que aqui, o fundo desta rua ampliado, me torna reconhecível o lugar: recuo o olhar dele até ao cruzamento mais cá e claro…
O cruzamento é o mesmo da imagem acima; o prèdiozinho de r/c e 1.º é o que se nela vê após o cruzamento, mas da rua travessa: a última é da Rua José Falcão, pelo n.º 9, orientada a Poente; a primeira é da Rua Francisco Sanches n.ºs 160 e seguintes; o prédio que se lá nela vê com andaimes de madeira (coisas de antes da Contubos e da Montal) já aqui falei dele. A final foi fácil descortinar estas scenas desta Lisboa do séc. XX hoje tão desfeada mas (no caso) ainda reconhecível.
Ao contrário da que se segue, que é tirada do mesmíssimo lugar.
Uma nota final: a drogaria na primeira imagem, em cuja porta se anuncia o Omo, durou até 2007.
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Fotografias:
Rua Francisco Sanches, 160 e ss., Lisboa, c. 1956; Rua José Falcão, n.º 9 e ss., idem. M. de Novais, in Bibliotheca d'Arte da F.C.G. (onde os tinhosos acorditas que a gerem no Flikr me interditaram os comentários).
Comício, Arroios, [c. 1910-11]. Alexandre Cunha, in archivo photographico da C.M.L.
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