Uma sobrinhita teve antes das férias da Páscoa autorização da mãe para ir e vir da escola sòzinha. Vai fazer 14…
Se bem me lembro, comecei a ir e vir da escola sòzinho ainda na primeira classe. Uma semana ou duas depois de entrar para a escola a minha mãe confiou que me não perdia e não perdeu ela mais tempo com levar-me ou buscar-me. Está bem que a escola primária era ao fundo da rua; hoje as escolas primárias acabaram e as que lhe sucederam nunca são ao fundo da rua — coisas, por desventura, do progresso da civilização de bairro para a de subúrbio, muito mai' moderna!... — Ao depois da quarta classe a escola preparatória já não era ao fundo da rua; era já caminho do bairro seguinte, mas continuei a ir só por mim, sem a mãe.
Tornando à escola primária, a primeira classe era de tarde: da uma e meia às cinco e meia. Mas na segunda classe começou a ser de manhã. Recorda-me que sim: assim de manhã era um horário mais crescido; de tarde era coisa de criancinhas da primeira. E na terceira e na quarta continuei de manhã, a justificar a minha ideia. Foi já pela terceira, quiçá, pela quarta classe que me recordo dumas férias da Páscoa em que saí de casa e me espantei da luz da manhã na minha rua. Dês que passara a estar enfiado numa sala de aula que não via a minha rua de manhã. Esquecera-me. E revê-la radiosa assim, esbranquiçada com a leve neblina e ao fundo o Tejo, numa manhã de Primavera, foi uma surpresa. Tomei consciência de que a escola me privava de parte da minha rua e que só fugazmente, em dias de férias, a teria inteiramente de volta. Sem saber ainda a palavra, senti-me frustrado. Mas era bom recuperar ali estas saudades. Ainda mais assim quando, no meio destes pensamentos, ouvi o roncar do camião da U.C.A.L. que trazia o leite para a fábrica dos iogurtes; era outra peça das manhãs da minha rua que me faltava e uma das melhores, porquanto os homens da distribuição, entregues as vasilhas de leite, nos deixavam, à rapaziada da rua, seguir consigo à boleia na caixa da camioneta até à calçada, onde o motorista abrandava e nós aproveitávamos para saltar.
Das férias da Páscoa tenho também a história do Monopólio, mas como já vai longo, fica para a próxima.
Judite Vieira, Manuel Ferreira Patrício, Silva Graça, «Manhã de Primavera», in Livro de Leitura da Segunda Classe, 1.ª ed., Atlântida, Coimbra, 1968, p. 68.
O Palácio do Correio Velho vai leiloar, nos dias 21, 22 e 23 de Março, a colecção do historiador José Hermano Saraiva. Outrora reunidas na sua casa de Palmela, que o próprio desenhou e enriqueceu com elementos arquitectónicos de outras épocas, as peças totalizam 840 lotes.
José Cabrita Saraiva, «Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva: Lá em casa as antiguidades usavam-se no dia-a-dia», Sol, 19 de Março 2018.
Sinto que o prof. Hermano Saraiva morreu pela segunda vez. Entristeceu-me à primeira; entristece-me agora. Da primeira foi o homem, agora foi a alma.
O mundo hoje não está para certas coisas!...
José Hermano Saraiva, [Palmela], [s.d.].
Autor n/i, in Sol.
Noticiário, no dizer bondoso de Júlio de Castilho, era a conversação geral sobre novidades:
« O noticiario é um signal de vida, é a Historia viva, é a chronica nacional a retalho. Não lhe peçam litteratura, nem estylo, nem exacção; peçam-lhe movimento, pittoresco, drama e comedia, tragedia e farça; isso tudo elle tem, e tudo isso dá. Conta com enthusiasmo, embora se desminta no dia seguinte; espalha boatos que se não confirmam, mas do que diz fica um sussurro vago, que é a voz da população. Essa voz, escutada pelos nossos vindoiros, ha-de ser para elles um indizivel encanto. »
Julio de Castilho, Lisboa Antiga: o Bairro Alto de Lisboa, 2.ª ed., vol. I, Lisboa, Bertrand—José Bastos, 1902, p. 247.
Hoje porém, para os publicistas que se pretendem senhores das actualidades oficiais, a conversação geral sobre novidades é fake news. Porque lhe contraria as homilias da verdade única.
E já nem de dizer «boato» temos cá gente capaz.
Banca de jornaleiro, L. de S. Domingos, c. 1974.
Artur Pastor, in archivo photographico da C.M.L.
Uma que parece entendida em olhar o Mundo em geral e olhar o Putin em particular dizia há pedaço no canal de «notícias» («notícias») das «confirmações ou alegadas confirmações do envolvimento russo nas eleições americanas [como] no próprio referendo no Reino Unido».
Ou a Rússia é todo-poderosa agora ou, quando as eleições não cheiram bem aos publicistas do votinho democrático universal, os batoteiros são os maus.
Já a China «é uma potência benigna em ascensão».
Olhar o Mundo, R.T.P. 3, 24/III/18.
O Rui Rio disse hoje mal do governo.
Fotografia: Lusa [Brasílica].
... Em ruínas.
Instalações da Fábrica da Pólvora no convento de Chelas, com a Horta da Maruja em segundo plano (detrás das casas e encosta acima) e Quinta do Armador (no alto), tomadas da linha de cintura.
Chelas — © 1990-91
Os que acordamos diàriamente, por fé ou atavismo querendo saber da espuma dos dias, ligamos a emissora. E dela ouvimos os recados das centrais da doutrinação geral diária. Hoje havia duas: uma era que morreu aquele entrevadinho da teoria de tudo que conforma o mundo hoje, que dizia we're all time travellers turning together into the future com a mesma inspiração e gravidade com que Darth Vader disse: — Luke, I am your father! — Bom! Talvez com menos gravidade. Mas o penico electrónico donde ecoava a voz era o mesmo.
A emissora gosta desde logo de compor estas homilias do engrandecimento das autoridades do paradigma vigente que passam a fazer tijolo, arregimentando sumidades de autoridade gaseificada e pendor semelhante para começarem a assentar o dito tijolo nos muros da mitificação. Para o mito de hoje foram buscar o Carlos Piolhais. Phiolhais. Fiolhais. Amanhã esquecem.
A segunda de hoje era que o governo vai disponibilizar dois milhões de euros para os centros oficiais de recolha de animais.
Acho dinheiro bem empregado. Contanto que os centros de recolha sejam mesmo oficiais!...
Carroça dos cães, Lisboa, 1939.
Eduardo Portugal, in archivo photographico da C.M.L.
Ouvi anteontem notícia duma greve nas infra-estruturas de Portugal. Confesso que não pensei em ferroviários.
Em pequeno vi o Robinson Crusoé na televisão. Fascinou-me a história, sobretudo a encenação de época: navios à vela, tempestades, naufrágios, ilhas remotas, selvagens antropófagos, mosquetes; um estímulo à minha imaginação e ao meu pendor, já na infância, para coisas de antigamente... Nem de propósito, pouco depois, recebi um livro fabuloso, ilustrado, com a história do Robinson Crusoé. Uma prenda da madrinha. Não sei como me adivinhou ela o gosto — e não porque eu tenha alguma vez pensado em tal livro, pois nem imaginava que existisse. Achei mais extraordinário o dom de me a madrinha adivinhar, porque em duas ou três ocasiões seguintes ofereceu-me ela outras prendas que coincidiram no meu gosto. E não foi nunca de eu pedir ou falar, porque os desejos que eu verbalizava eram de coisas diferentes, disso tenho clara ideia. Destas coincidências formei ideia de que a madrinha parecia que tinha o dom de adivinhar prendas que me agradavam. Até hoje. Mas, bom, é isto história de criança…
Há semanas — em Janeiro — o José desfez na Porta da Loja um novo livro do atentado a Salazar em 1937, dum tal Araújo historiador e, de caminho, referiu Emídio Santana, velho anarquista por dentro do atentado que escrevera, ele, também, um livro sobre o caso (Emídio Santana, História de um Atentado; o Atentado a Salazar, Forum, Mem Martins, 1976). Recorda-me de ter pensado: — Este livro é que talvez interessasse; não essa novidade agora do tal Araújo. Calhando ainda vou procurá-lo nalgum alfarrabista.
E o caso passou-me assim na mente e esmoreceu sem que nada, afinal, eu houvesse feito nem viesse a fazer. Nem falei do caso a ninguém. Até que certo dia, uma ou duas semanas após, chego ao trabalho e tenho o livro de Emídio Santana na secretária com um recado:
— De: Fernandes […] Nota: depois falamos.
Quando falámos não só lhe agradeci como quis saber quanto lhe devia. Pois, não me aceitou o meu gentil amigo Sr. António Fernandes um real pelo livro. E que até o ofendia!… Contei-lhe resignado, então, que a feliz coincidência de me ele aparecer a oferecer um livro que eu desejara havia dias me recordava aquela história da minha madrinha em criança: era comparável no dom de adivinhar. O Sr. Fernandes só me disse:
— Ora aí tem. Com essa história, já me V. pagou o livro.
A imagem mostra mais um livro. Sábado de manhã toca-me o telefone; oiço de lá num estilo inconfundível:
— Bom dia! Tenho aqui a «Correspondência Marcello Mathias / Salazar, 1947/1968», com prefácio do Prof. Veríssimo Serrão. Já tem?
— Bem, não, mas veja o Sr. Fernandes...
— Bem me parecia! Segunda de manhã lá o tem. Até lá!
Não é só por estes que estou penhorado ao meu bom Amigo. São mais. Não sei como lhe pagar.
Uma notícia (notícia!?...) de há mais de um ano (que digo? Dois anos e meio) requentada hoje à hora do almoço num telejornal (nem sei que canal) espelha a infantilidade e define bem os horizontes desta civilização de subúrbio. Uma escola (escola?!) na mata do Choupal; um conceito pseudo-pedagógico a rasgar limites e convenções (deveras moderno!…) Um «projecto de educação» de jardim-infantil, de criancinhas dos 3 aos 5 — e não me refiro só aos educandos — em que no fim é tudo plastificado; das educadeiras (que bem se vê nunca cresceram, aprendizes que são da Escola Superior de Educação) à brincadeira certificada por trilhos de catálogo: o «caminho das poças», «o caminho dos escorregas», o caminho directo para a casa e outras opções […] O pilar básico das práticas que aqui se desenvolvem é a livre exploração, o brincar livre.
Ah, o brincar livre! Santa conformidade ao pilar básico das práticas!...
Lembra-me eu com isto das terras, do convento, do túnel da bruxa, mundo de aventuras e de lições vividas antes e depois da escola primária (que era só meio dia): numa vez podíamos ir descobrir as três pontes, que eu via da janela da minha mãe, e voltarmos a casa passadas horas, depois desses descaminhos — alguns mais meninos da mamã acabavam por apanhar da mãe ou da avó, raladas de não saberem dos bijous uma tarde inteira; noutra vez lá estavam à mesma, a descobrir o Broma, a Salgada, as Conchas, as Conchinhas, a Maruja, os Alfinetes, a Madre de Deus, Xabregas, os Toucinheiros ou a Amorosa, por carreiros, calçadas, azinhagas, matas, barrancos, escaladas; tanta vez a dar em púrrias, como invasores de domínios alheios; tanta vez (já os tempos mudavam) corridos simplesmente à pedrada. Os mais crescidos, que já conheciam todos os trilhos e lugares de aventura passavam o «seu» território aos mais novos, com orgulho, e assim seguia a exploração do mundo sem nunca acabar. Até que veio a civilização de subúrbio a cavalo na modernidade e acabou-se.
Agora cresce-se só em estufas e brinca-se apenas por catálogo.
Rua dos Fanqueiros, Lisboa, 1945.
Judah Benoliel, in archivo photographico da C.M.L.
* *
*
Há dias publiquei esta da Rua dos Fanqueiros, das chuvadas de Novembro de 1945. Retoquei-a um tanto num editor de imagem. Obviamente, passados poucos dias, logo a houveram de chapar no livro das fuças — a que eu editei, não a que se acha no archivo photographico da Câmara, mais baça e menos definida (pesquise por «inundações judah» aqui, marcando Autores/produtores; cf. p. 4). — Talvez mencionassem lá no livro das fuças o nome do autor (mencionam); o que não mencionavam eram as fontes, primária (o archivo) ou secundária... Mas se ter ido parar ao livro das fuças a partir daqui ou dali não espanta (pelo contrário), já a parvoíce dos comentários por lá ainda me parece digna de tal.
Pensando melhor, nem sei se será.
De palpites mais tolos, dizendo que a imagem era do Martim Moniz e que a velha Praça da Figueira eram os pavilhões que lá andaram provisórios por 30 anos, aos dos egos mais ansiosos de exibir a sua sapiência repetindo-se sucessivamente no anúncio de que era a Praça da Figueira sem ler que já o anterior e uns poucos antes, também pressurosos, o haviam anunciado, nenhum — nenhum! — refere a Rua dos Fanqueiros. — Quiçá por remeter para fancaria e o saber facebookiano valer ouro! — Mas nesta gente que sabe tanto e tudo mais sem no entanto não ler nada, nunca, nem os poucochinhos comentários anteriores, há sempre um que sobressai; o que sabe ainda mais, além de todos, e diz magnânimo de rasgo: — É de facto o Mercado [sic] da Praça da Figueira e a foto obtida a partir da rua da Betesga.
Ora não haveria um sábio tamanho de saber, de ter enfiado antes o Castelo na Rua da Betesga?!...
Rua da Betesga, Lisboa, 19...
Eduardo Cunha, in archivo photographico da C.M.L.
Pode vir lá borrasca, mas isso é mero mau tempo no Inverno. Notícia a valer é o perigoso aviso vermelho que tingirá (exacto: de tingir) a costa... protuguesa.
Adenda às 9 menos13 da noite: neste mesmo instante o canal do Correio da Manhã interrompeu o alarme de perigo da manda-chuva Maria João Frada para dar o treinador Benfica. Não deixa de ser um aviso vermelho.
As notícias da invernia no Inverno anunciam uma tempestade. Parece que lhe chamam Félix... — Agora as tempestades têm baptizo. E padrinhos inspirados...
Enxurro, Lisboa [?], [s.d.].
Colecção de Eduardo da Cunha, in archivo photographico da C.M.L.
No canal de notícias da sociedade industrial de concentrados, S.I.C.-N., ouvi do mau tempo — perdão! — tempo extremo no Inverno. — Se fosse «mau tempo» seria como o cão que mordeu o homem, mas posto assim é grande notícia:
— «Um tornado de baixa intensidade fez estrago em todos os distritos do Algarve».
O Algarve tem só um distrito, que é Faro...
Bom, mas tem muitas arribas. No fim, um entendido entrevistado dizia que vai haver um «ajuste morfológico» nas ditas, que durará.
«Ajuste morfológico»!...
No Meio Físico e Social da 4.ª classe ou nas Ciências da Natureza do 1.º ano do ciclo ainda me lembra de me ensinarem da erosão. Mas, claro, «ajuste morfológico» é muito mais actual. Conheço uma fotografia do fenómeno.
Ajuste morfológico nas arribas do Algarve [amplie para ver], Praia da Falésia, 1998.
Artur Pastor, in archivo photographico da C.M.L.
Ao depois duma chuvada, uma olheirada.
Av. 24 de Julho, Lisboa, 1945.
Judah Benoliel, in archivo photographico da C.M.L.
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