José Hermano Saraiva, Broa de Avintes.
(Horizontes da Memória, R.T.P., 28/XII/1997.)
Nunca demandei muito o 17. A Armanda sapateira e o Semestre, sim, que moravam nas Galinheiras. Recorda-me — há-de ter uns quarenta anos, era eu miúdo — de ouvir minha mãe comentar com meu pai que o 17 não ia só já para as Galinheiras e que lhe mudaram o percurso para os Fetais.
Onde eu via muitos 17 passar, a par do 35, caminho do Cais do Sodré, era ao Chile, na Rua Morais Soares. Estranhamente, nunca me lembra de ter visto um autacarro de porta atrás nesta carreira até àquela vez em que contei esta historieta.
E agora aqui outra vez.
Autocarro 17 com porta atrás, Santa Apolónia, 1982.
Mike Rhodes, in Flickr.
«Andar nos autocarros, de dois pisos…», Diário de Lisbôa, 31/I/1959.
1.º andar dum autocarro de 2 pisos dos anos 50 (vista anterior), Museu da Carris, 200…
Andar inf. dum autocarro de 2 pisos dos anos 50 (vista anterior), Museu da Carris, 200…
Andar inf. dum autocarro de 2 pisos dos anos 50 (vista posterior c/ «bancos dos palermas»), Museu da Carris, 200…
(Fotografias de A. n/id.)
Quem tenha visto «Uma história de Natal» do prof. Hermano Saraiva há-se de lembrar que ele começa contando que as histórias de Natal são sempre iguais: muita neve, muita neve; ventos a uivarem pelas quebradas das das montanhas; lobos ao longe; meninos com muito frio e fome, coitadinhos, sem um brinquedo sem um chocolate; o pai e a mãe muito tristes… Ao depois vem o Menino Jesus e dá-se o milagre: presentes e felicidade para todos.
É bonito, mas, também conta o prof. Saraiva no episódio que às vezes não há milagres.
Nesta história d' «Uma Consoada no Sahara» não há neve; frio, talvez; milagres, não sei; mas vejamos e no fim, ajuíze o benévolo leitor.
Villa Cisneros, 1947
Cte. Silva Soares, in Histórias com Asas, A.P.P.L.A., Lisboa, 1992.
UMA CONSOADA NO SAHARA
Durante a minha carreira de piloto de transportes públicos, muitas foram as Consoadas que passei longe da família. Paris, Madrid, Elisabethville (capital do efémero Estado do Katanga), Cairo, Accra, e Villa Cisneros (a actual Dakhla, tão desejada para capital pela Polisario), foram alguns dos locais em que fui apanhado pelo Natal ou Ano Novo.
O Rio de Janeiro, S. Paulo, Luanda, Beira, e Lourenço Marques, também me serviram de palco a Consoadas. O Fim do Ano de 1966 foi passado em agitado voo entre Cabinda e Luanda, durante a evacuação de um operário da Cabinda Gulf Oil, vítima de grave acidente duma sonda de prospecção de petróleo.
Não esqueço uma noite de Natal, em 1948, em Elisabethville. Um dos passageiros brindou a tripulação do avião com um maravilhoso concerto de piano em que as polacas de Chopin [**] foram o prato forte. Num piano, diga-se, de onde à mistura com as cristalinas notas, saltavam gigantescas baratas! Chamava- se o passageiro… Sequeira Costa.
Porém, uma Consoada houve que ainda hoje recordo, se não com saudade, pelo menos pela série incrível de azares que me levou a passar a noite de Natal no deserto do Sahara! Foi o Natal de 1952 em Villa Cisneros.
No dia 22 de Dezembro, chegado a Lisboa vindo de Londres, fui avisado de que estava escalado para seguir de imediato para Villa Cisneros, pilotando um DC-3 para substituir o avião da linha d' África, que na descolagem para Dakar sofrera uma grave avaria num dos motores e abortara a descolagem. Lavaríamos material e pessoal para a reparação desse avião. Terminada a reparação, regressaríamos a Lisboa. Esperava-se que estivéssemos de regresso, o mais tardar, na manhã do dia 24.
Se tudo correr bem, pensei.
Depois de um voo directo de Lisboa a Villa Cisneros, quase oito horas de monótono voo, aterrámos às duas da manhã no meio de uma nordestada agreste e fria que, levantando a areia, tornava a visibilidade muito reduzida. Rapidamente se procedeu ao transbordo do correio, carga e bagagem. Uma vez reabastecido, e embarcados os passageiros, a carreira d' África descolou para Dakar.
Mas, aproveitando a azáfama e confusão do transbordo, roubámos à tripulação, que iria, na melhor das hipóteses, fazer a Consoada em Accra, um bolo-rei de tamanho descomunal. Ainda não tinham atingido a altitude de cruzeiro quando deram por falta do bolo-rei, enviando para Villa Cisneros um telegrama em que nos desejavam uma difícil, dolorosa e doentia digestão do bolo-rei!
No meio da risota que tal telegrama causou aos ladrões, esquecemo-nos de que o «crime não compensa», e de que «Deus escreve direito por linhas tortas».
Villa Cisneros tinha, na altura, meia dúzia de casas em volta de um forte militar (cópia fiel do forte do filme «Beau Geste»), e umas dezenas de tendas. Era a capital do Sahara Espanhol, e a magnífica baía, virada a Sul, um dos abrigos utilizados pela numerosa frota de pesca que actuava na área do Cabo Branco.
Uma das casas era o «parador», a pousada, maravilhosamente decorada no estilo andaluz, com simplicidade e requintado bom gosto. O «parador» normalmente estava ocupado pelas famílias dos oficais do exército que, ali estacionados, não dispunham de residência. Mal se soube que «los portuguesitos» iam ficar uns dias em Villa Cisneros, foi um alvoroço na terrinha. Dadas as boas amizades que ao longo de anos tínhamos feito com aquela gente, não houve dificuldades no «acomodar» dos inesperados visitantes no superlotado «parador», nem faltaram programas para festas em nossa honra. Para nós, a não ser um sempre presente receio de que as coisas «dessem» para o torto e acabássemos por passar o Natal longe da nossa família, esta passagem por Villa Cisneros prometia um agradável passatempo turístico saharitano, um aperitivo para os festejos de Natal e Ano Novo.
Às tantas da noite, depois de uma ceia de «gambas a la plancha» regadas com um magnífico tintol, resolvemos ir até ao «aeroporto» (um quadrado talhado no deserto com quase dois quilómetros de lado!), para ver como estava correndo a reparação do motor avariado.
Fazia um frio horrível, e soprava um Nordeste seco e carregado de areia que cortava a pele, já gretada pela secura do ar.
O trabalho dos mecânicos, na falta de um hangar, decorria ao ar livre. Para impedir a entrada de areias para o interior do motor, trabalhavam cobertos por oleados e lonas, que dificultavam os seus movimentos e a iluminação da área de trabalho.
Mas, mesmo em condições tão adversas, a reparação estava decorrendo com rapidez e perfeição, e a substituição de um dos cilindros estava quase terminada. Dispúnhamos de todo o dia seguinte para terminar o trabalho, e fazer acamar os segmentos por rodagem do motor. Pareceu-me desnecessário submeter o pessoal a tão duras condições de trabalho, uma vez que bastaria parte da manhã seguinte para preparar o motor para a rodagem. Resolvi que se suspendesse o trabalho, e aproveitassem a noite para o merecido repouso.
Todos ajudámos a calafetar e a cobrir o motor. E, como alguns dos segmentos já estavam apontados, para além de recomendar às sentinelas que não rodassem o hélice [***], pendurámos no cubo do hélice um enorme cartaz pedindo, em espanhol, que não mexessem no motor nem na hélice. Junto do avião ficaria uma sentinela, pelo que não corríamos o risco de que um tuareg mais bisbilhoteiro se metesse a mecânico amador.
Na manhã seguinte, seriam umas oito horas, sou acordado pelo chefe de mecânicos, apoplético e berrando-me que «uma besta qualquer rodou o hélice e lixou-nos o motor!»
Fiquei para morrer…
Um DC-3 Dakota dos T.A.P., Villa Cisneros, 1947
A. n/id., in Histórias com Asas, A.P.P.L.A., Lisboa, 1992.Durante a noite, uma das sentinelas achou que ficava muito feio não estarem as hélices de ambos os motores em posição simétrica. E para nosso azar, logo resolveu «acertar» o hélice do motor em reparação. É evidente que mal rodou o hélice, dois segmentos partiram-se e pelo menos um dos seus fragmentos caiu para o interior do cárter.
Tínhamos segmentos sobressalentes, mas o motor não podia ser dado como operacional sem que estivéssemos certos de que não ficaram quaisquer fragmentos dos segmentos partidos no interior do motor.
Acompanhei o mecânico até ao nosso querido avião, o único meio de que dispúnhamos para sair daquele «buraco» e passarmos o Natal com a família. Toda a manhã, à medida que eram pescados os pedaços de segmento, estivemos absorvidos na desesperante tentativa de reconstituir, completa e minuciosamente, os dois segmentos partidos.
Ao meio-dia, já um dos segmentos estava completamente reconstituído. Faltava, porém, um bom pedaço do outro segmento.
E a «pesca» não estava dando mais nada!
Sob um Sol escaldante, e a irritante areia que o vento seco levantava, já os nervos estavam «em franja», e até entre os mecânicos se instalava o desânimo e se verificavam os primeiros atritos.
Decidi que fosse suspenso o trabalho. Mesmo perante a discordância de todos mantive a decisão. Não valia a pena remar contra a maré…
Iríamos almoçar e dar tempo a que esfriassem os nervos. Depois do almoço retomar-se-ia o trabalho até às nove da noite. Depois da Consoada, se necessário, continuar-se-ia o trabalho, na tentativa de terminar a reparação de modo a possibilitar a nossa chegada a Lisboa a tempo de jantar.
Quando os amigos de Villa Cisneros souberam das nossas dificuldades, embora tomassem ares de circunstância, embandeiraram em arco. É que, para eles, ia ser um Natal… com convidados!
Foram de uma amabilidade extrema. O jantar-ceia foi coisa… fina. Além de pantagruélicos bifes de camelo, uma «paella», lagosta suada, e toda a espécie de mariscos. Até um «helado con melocotón» foi servido! Feito com leite de camela, que o açucar e essência, em quantidades industriais, não conseguiam disfarçar os sabor característico e desagradável.
Mais não era possível para nos apaparicarem.
E não faltaram os presentes! Umas babuchas a um, um pingalim a outro, um punhal árabe ainda a outro, todos tivemos um presente.
Mas nada nos podia levantar o moral, pois o trabalho até à hora de jantar não resolvera coisíssima nenhuma. O maldito pedaço de segmento teimava em não aparecer.
Pouco depois da Consoada, depois de muitas desculpas e agradecimentos, os mecânicos dirigiram-se novamente para o avião. Iam fazer a última tentativa de «pesca». Se não resultasse, desmontariam um outro cilindro que melhor acesso lhes proporcionasse ao cárter.
Num gesto de solidariedade, todos os que tomaram parte na Consoada resolveram acompanhar os mecânicos.
Tanta simpatia e amizade acabaram por comover o Criador…
Mal começaram a descapotar o motor, caiu no tabuleiro colocado por baixo da zona de trabalho o pedaço de segmento que faltava!
Desde o início da «tragédia» que caíra, não para o cárter, mas para uma dobra do oleado. Por artes do demónio, aí se manteve, apesar de várias vezes se ter removido e sacudido.
Foi o fim do mundo! Espanhóis, portugueses e árabes, riam e pulavam de alegria. Trocávamos abraços repenicados.
Ninguém pregou olho, nessa noite, em Villa Cisneros. Num improvisado «reveillon», centrado numa esganiçada grafonola, que descascou passo-dobles e marchinhas até às quinhentas da matina, demos largas à nossa alegria. Nem fogo de artifício faltou no improvisado arraial, com uns quantos tiros de very-light e de pistola. Até a Amina, que vivia numa tenda próximo do forte, esbugalhou os doces olhos de gazela (ou olhos de gazela doce?) perante aquela maluquice dos infiéis.
Quando raiou o dia 25, ao ser hasteada a bandeira espanhola, no meio de grande cerimonial e aparato militar, frente a uma impecável e folclórica companhia de meharís montada em feiosos camelos, como pano de fundo, ouvia-se o roncar alegre do nosso motor, já a fazer a necessária rodagem.
É que, surdos à farra, os mecânicos trabalharam desalmadamente todo o resto da noite.
Ás oito e meia da noite desse mesmo dia 25, aterrávamos em Lisboa. E jantámos com a família…
O castigo pelo roubo do bolo-rei ia ficando pesadíssimo. O crime, ficou mais uma vez provado, não compensa. Nem sequer provámos o maldito corpo de delito, pois constituiu presente da tripulação aos nossos anfitriões. E nem a prenda era coisa que se visse. A fava, essa, era enorme! Chegou para toda a tripulação «criminosa».Eduardo Alexandre Viegas Ferreira de Almeida, «Uma Consoada no Sahara», in Quarenta Anos de Aviação, Martins & Irmão (impressor), 1995, pp.115 e ss.
[*] O prof. Rebelo Gonçalves ensina Sara no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (Atlântida, Coimbra, 1947, p. 365), explicando que é a forma que mais convém dar ao nome do grande deserto africano, como já fez o Vocabulário da A.C.L., e em que, não obstante o uso antigo do género feminino, se pode fixar, sob natural influência da palavra deserto o género masculino: o Sara. Esta forma, ao mesmo tempo que corrige a acentuação na última sílaba, devida à imitação do fr. Sahara, concilia e sintetiza duas que outrora se empregaram: Çahara (com acento na antepenúltima sílaba) e Zara. Compreensivelmente o A. da história , nascido há cem anos, segue aqui a forma francesa.
[**] Longe vinham ainda os violinos de Chopin.
[***] Os dicionários dispõem hélice como substantivo feminino. Entre o pessoal aeronáutico é mais frequente o seu uso no masculino, embora com oscilações, que aliás se percebem nesta história do Cte. Viegas Ferreira de Almeida.
José Hermano Saraiva, Uma história de Natal.
(Horizontes da Memória, R.T.P., 21/XII/1997.)
Natal Correggio, 1528-30 — Óleo sobre tela, 256,5 x 188 cm
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Aos benévolos leitores que
~~~~~ * * * ~~~~~ FELIZ NATAL ~~~~~ * * * ~~~~~
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O bem-estar animal é muito importante. Vai a par do Ghandi.
Só decerto animalejos em busca de bem estar sonegam com valorosos princípios de «educação», «cidadania» e «Ghandi» os horrendos feitos de Afonso de Albuquerque na Ásia. É como bem está a instrução pública. O paradoxo é que, sem ele, o terrível Afonso de Albuquerque, o pequeno babouche (*) não era nada. Não existiria. Nem Governos, nem ministros da Educação Nacional perfeitas bestas quadradas a olhar primeiro para o bem-estar animal sob capa dum Ghandi.
Ghandi e bem-estar animal. Vede bem nisto onde haverá portugueses.
(*) António Costa: o pequeno babouche, cínico sem carácter segundo José António Saraiva, in Eu e os Políticos, Gradiva, Lisboa, 2016, p. 250).
Revisto em 22 às 11.
Achei graça a este título com sodomitas. Em falando de templários não parece haver nos publicistas pejo por aí além com a linguagem. A transmissão da notícia torna-se forte, clara e nítida. E os templários podem bem carrregar com ela, sodomia. Numa outra de 1700 padres é igual. Sem espanto; não eram também freires os templários?
Pelo contrário, em tanta notícia de tanta e desvairada gente que corre, salta e se agita por aí, o léxico desses publicistas é um divã de eufemismos bem almofadados.
Aviso: o entrevistador João Sacadura que conduz a entrevista é brilhante; daqueles que pregunta por circunlóquios de saber enciclopédico e que interrompe amiúde o convidado antes que ele responda, não vá o entrevistado, pois, ofuscar-lhe o brilho.
Se príncipe não é prince, se a rainha é Isabel e não Elisabeth, por que diabo Philip não é Filipe?
Príncipe Filipe (O servador, 20/XII/19).
O mamarracho com jeitos de clandestino empoleirado lá atrás é um devoluto que pegou fogo há dias dalguma sopa de cavalo. Conquistas da libardade anunciada no vota! vota! vota! das casas velhas a par do caminho-de-ferro, sem dúvida.
Passagem de nível da linha de cintura de Alcântara, Campolide, 1980.
Biblioteca de Wood, n.º 1455, in Flickr.
O nome da rua travessa além da passagem de nível é um enigma que me puseram e que ando por resolver. Para adiantar, as casas do lado de lá onde havia a P.U.P., encobertas pelo autocarro, eram da Vila Lopes.
Quando comecei a ter o passo social era assim.
In Wood's Library.
(Publicado originalmente em 29/VII/10 às 7h03 da tarde.)
A colonização do rectângulo vai em boa marcha. Dantes cantávamos as janeiras. Agora há cânticos de Natal em amaricano no metropolitano e coros gospel no aeroporto.
Não imagino o que o turista venha a esta terra fazer. Ver da América?…
Portugal, séc. XXI — © 2006
Atípicos…
Atípicos, porquanto os mais antigos que conheci nesta carreira da Damaia foram os AEC Regent V, os típicos autocarros de porta à frente.
Fotografias:
AEC Reliance, n.º de frota 63, Avenida, 1980 (Biblioteca de Wood, n.º 1407).
AEC Regent III, n.º de frota 220, Rotunda, 1971 (Sr. Cliff Essex).
A.E.C. Regent III n.º de frota 240 na carreira 4A [?], Rossio de Lisboa, c. 1960.
Fototipia animada dum original de Portimagem, in Flickr.
José Hermano Saraiva, Vem aí o Natal.
(Horizontes da Memória, R.T.P., 14/XII/1997.)
* * *
Das idiossincrasias de Humberto Delgado, Tenente-Coronel director do Secretariado da Aeronáutica Civil nos tempos do lançamento da T.A.P., não conheço melhor do que as memórias do Comandante Viegas Ferreira de Almeida. É longo para aqui (o tempora, o mores! ), mas asseguro que não defrauda o benévolo leitor interessado que o leia. O episódio que transcrevo ipsis verbis basta-se a si mesmo para caracterização do apregoado Humberto Delgado e do traidor à Pátria:
TRAIDOR À PÁTRIA
De muita coisa tenho sido chamado ao longo da minha carreira profissional. Com, e sem razão. Coisas agradáveis de ouvir, outras desagradáveis. Merecidamente, por vezes, mas algumas vezes muito injustamente. De tudo um pouco…
Até, e por isso o título desta «estórinha», fui expulso do Secretariado da Aeronáutica Civil por… traidor à Pátria.
O epíteto com que fui «galardoado» e a expulsão duraram muito pouco te[m]po. Menos de vinte e quatro horas. Pode parecer uma brincadeira de mau gosto, mas tudo se passou muito a sério, e foi pura verdade.
Era director do Secretariado da Aeronáutica Civil o Tenente Coronel aviador Humberto Delgado, Sub-Director o Major aviador Humberto Pais, e director técnico o Major aviador Humberto Cruz. Três Humbertos que, de parecido apenas tinham o nome. Cada um deles tinha a sua personalidade diferente da dos outros. Curiosamente essas personalidades estavam de acordo com a função que lhes cabia no Secretariado. Ao brilhantismo e fogosidade do director, seguia-se o senso administrativo e capacidade do sub-director, ambas, por sua vez, complementadas pelo prestígio aeronáutico ganho na gloriosa era dos raids a África, Extremo-Oriente, e Índia, e capacidade de comunicação e direcção, do director-técnico.
Foi no Secretariado que se agruparam os pilotos requisitados à Aeronáutica Militar e Aviação Naval para os futuros TAP [1].
Antes de partirmos para o curso em Inglaterra, outros que não eu, mais «maduros» e sabidos, procuraram saber da Direcção quais as condições contratuais que nos seriam oferecidas uma vez terminado o curso e iniciadas as actividades de linha nos TAP. No entanto, porque tudo se estava processando em grande afobação, dada a urgência da nossa partida por se aproximar a data de início do nosso curso, foi-lhes respondido que após o nosso regresso de Inglaterra se esclareceria o assunto. Que não estivéssemos preocupados porque nos seriam oferecidas condições… «muito interessantes»!
Já em 1946, depois do regresso de todos os pilotos que terminaram o curso e estágio nas linhas, fomos recebidos pelo director em entrevista individual. Embora omitindo a classificação que obtivéramos no curso, deu a conhecer, sob carácter reservado (!), o perfil profissional que a Escola elaborara referente a cada um de nós. Em seguida, em entrevista colectiva, depois de nos fazer um elogio colectivo, participou-nos a data em que nos seria dado o contrato para assinatura.
Mas, quanto às condições que esse contrato iria oferecer… nada!
Contrastando com a usual descontracção que caracterizava os nossos encontros, «com os meus rapazes» como sempre nos designava, sentimos um formalismo e uma frieza que nos alertou.
Procurámos tomar conhecimento do conteúdo do misterioso contrato, e acabámos por consegui-lo através do director técnico, aparentemente discordando do sigilo pretendido.
Foi um autêntico balde de água fria nas nossas esperanças!
Em linhas gerais o contrato estipulava, sem atender às classificações que obtivéramos no curso, que seríamos distribuídos em três categorias: os capitães e 1.ºs tenentes como 1.ºs pilotos, os tenentes em 2.º piloto, e os alferes e sub-tenentes como 3.ºs pilotos. Os vencimentos eram, praticamente, os que trazíamos das forças armadas. E pouco mais nos oferecia…
A nossa reacção foi de total repúdio do que nos pretendiam impor. Sentíamo-nos logrados na nossa boa-fé, e revoltados com a falta de lisura que se pretendia utilizar.
Resolvemos recusar com firmeza o contrato. A não ser profundamente alterado o contrato, pediríamos que nos fosse dada como finda a nossa comissão civil e o nosso regresso às unidades de origem.
Eu sentia-me completamente desiludido com tudo isto. Afinal, de aviação civil, isto nada tinha. Pretendia-se, encapotadamente, prolongar a nossa situação de militares destacados em comissão civil. Resolvi abandonar o Secretariado da Aeronáutica Civil, uma vez que a minha carreira militar terminara durante o estágio nas linhas da BOAC [2], através de inesperada, mas bem atempada passagem à disponibilidade. E, uma vez terminada a minha situação de comissão civil, a não ser um vago compromisso de ordem moral, nada de natureza legal me ligava ao SAC. Telegraficamente, foi oferecida a minha colaboração à DETA de Moçambique [3]. Grande parte da minha família vivia espalhada por Moçambique, incluindo meu pai, médico na Beira. Não pretendia trabalhar nas condições que me pretendiam impor de maneira tão abusiva. E, se negativa a resposta da DETA, tentaria a DTA de Angola [4], ou emigraria para o Brasil. Não me obrigariam a aceitar o que não estivesse na minha vontade.
Mal imaginava que, muitos anos depois, por razões diferentes, as voltas da vida me levariam a Angola, e depois ao Brasil.
Entretanto chegou o dia aprazado para a assinatura do famigerado contrato.
Por portas travessas tivemos conhecimento que o «chefão» [5] teve conhecimento da nossa reacção ao seu contrato. Explodiu de fúria, disseram-nos…
Estávamos preparados para sermos comparsas duma teatral fantochada encenada pelo «chefão». Ele adorava e abusava de tais cenas.
Um a um, fomos chamados ao gabinete do director. Começaram por mim, julguei que por ser o mais novo. Começam… por baixo, pensei!
Logo ao entrar, fiquei surpreendido com as alterações feitas à sala. A mesa do «chefão» mudada para a parede oposta à porta de entrada pareceu-me truque para efeito psicológico, pois obrigava-nos a um longo percurso até ao «cadafalso», onde nos aguardavam os três Humbertos e o chefe da secretaria, todos com cara de caso.
Mal me apresentei em frente da mesa, sem qualquer preâmbulo e em tom de circunstância, S. Ex.ª [6] informou-me:
«Ao senhor nenhum contrato é oferecido. A partir deste momento está expulso do Secretariado da Aeronáutica Civil, por traidor à Pátria».
E sem me dar tempo a recompor do choque, acrescentou: «Deverá dirigir-se à secretaria onde lhe será entregue cópia do meu despacho de expulsão e correspondência do Ministério do Ultramar a si dirigida». Com um seco «Pode retirar-se» terminou a minha «lide».
Cumprimentei os restantes Humbertos e o chefe da secretaria e… saí! Não pela porta por onde entrara, mas por outra que evitava contactos com os restantes «penitentes», e me levava directamente à secretaria. Aí, onde reinava uma gélida «suspense», entregaram-me dois envelopes. Ainda meio aparvalhado, apercebi-me que um dos envelopes era do Ministério do Ultramar.
Menos de dez minutos após entrar no gabinete do director do SAC, respirava os ares puros da Avenida da Liberdade.
Quando «arrefeci» e comecei a raciocinar, sentado num banco da Avenida, abri e li o envelope do SAC. Era um ofício em que me era comunicado que, por despacho de S. Ex.ª o director, se dispensava a minha colaboração no SAC. Sem a mais pequena justificação ou explicação. «Tout court»…
O envelope do Ministério do Ultramar, dirigido ao SAC, pedia que me fosse dado conhecimento que, por ter sido aceite a minha candidatura para a DETA, me deveria apresentar para tratar do contrato de embarque. Era a explicação que faltava para o epíteto de «traidor à Pátria» [7].
Resolvi voltar ao SAC para uma conversa com os restantes «penitentes». Estava com curiosidade em saber como decorrera o resto da cerimónia de assinatura do contrato.
Já a sair do SAC, «o senhor que se me seguiu», macambúzio e acabrunhado confessou que se vira obrigado [8] a assinar o contrato. O director, mal ele se acercara da mesa dos Humbertos, perguntou-lhe se era verdade que tivesse já seis filhos. E, descaradamente, perante a confirmação de que ele era pai de seis criancinhas, recomendou-lhe que pensasse bem antes de se decidir se aceitava ou não o contrato que lhe ia ser lido!
«Compreendes, eu não posso ficar desempregado, pois fui passado à disponibilidade estava eu a fazer a linha do Cairo» [9].
Contei-lhe o que se passara comigo, e a aceitação da minha colaboração por parte da DETA.
«És um tipo cheio de sorte. Podes mandar estes tipos à ......!», comentou.
Depois do almoço voltei ao SAC, e acabei por saber a história completa da cerimónia. As coisas, ao cabo de algumas cenas peripatéticas, correram mal para o «chefão». Os pilotos restantes, oficiais do acto da Aviação Naval e da Aeronáutica Militar, não aceitaram o contrato e pediram o regresso às unidades donde eram oriundos.
Como se tratava duma situação inaceitável para o director do SAC, por razões óbvias, depois de mais umas quantas encenações para salvar o seu amor-próprio, não teve outra solução senão negociar. Para tal saída muito concorreram os out[r]os dois Humbertos, menos fogosos e muito mais sensatos. Aliás, já durante a minha «expulsão» me pareceu claro o desconforto de ambos. Idêntica opinião me expressara o pai das seis criancinhas.
Assim, uma vez apresentadas as condições pensadas como minimamente aceitáveis para os pilotos presentes, rapidamente se chegou a um consenso. Em menos de uma hora um novo contrato foi elaborado [10].
Os vencimentos passavam a ser um pouco superiores ao que se recebia nas aviações militar e naval. Haveria uma gratificação por quilometragem realizada em serviço de linha, e umas ajudas de custo, medíocres, mas aceitáveis. Quanto à distribuição pelas categorias, tudo ficou como estava! [11] Como se tratava de assunto que pouco, ou muito pouco, constituísse ponto quente dos oficiais, resolveu o «chefão» manter-se intransigente. Quanto muito, prometia que os terceiros pilotos, antes do fim do ano, seriam promovidos a segundos pilotos…
No dia seguinte, quando da assinatura do novo contrato, novo impasse se verifica. Os pilotos recusam-se a assinar o contrato sem que o mesmo seja oferecido a todos os pilotos que satisfizeram no curso da BOAC.
Nova explosão de ira do director do SAC, e mais uns quantos momentos quentes se viveram, até que nova intervenção apaziguadora de Humberto Pais e Humberto Cruz levou o Ten. Cor. Humberto Delgado a aceitar o desejo da maioria dos pilotos, mas, para salvar a face, entregou o problema referente aos dois restantes pilotos, eu e o pai das seis criancinhas, ao director técnico [12]. Chamado ao seu gabinete, depois de longo e amigo papo, com a sua lógica de paizinho sabidão, acabou por me convencer a aceitar o novo contrato e a desistir de trocar os TAP pela DETA.
Até 12 de Novembro [de 1946] não voltei a ter qualquer contacto com S. Ex.ª o director. Não faltaram trabalhos e voos, e raramente desci até à Avenida da Liberdade, onde se situava o SAC.
No entanto, no dia 12 de Novembro, o «chefão» marcou uma reunião com todos os pilotos. A reunião realizar-se-ia no velho palacete onde funcionava o armazém de sobressalentes e os gabinetes da manutenção (antes, serviu de sede à Esquadrilha de Caça da Defesa de Lisboa) [13].
De todos os lados surgiram palpites quanto às razões de tal reunião. Mas não passavam de… palpites.
Afinal, depois de, num brilhante improviso, louvar o trabalho de preparação e execução das viagens experimentais da linha de África, fomos informados em «primeira mão», de que a «Linha Imperial», (a nossa linha d' África), seria inaugurada em 1947. Embora uma resolução governamental, a data dessa inauguração ainda não estava assente [14].
Terminado o improviso, todo sorrisos e descontracção, chamou-me e… abraçou-me! Confesso que fiquei um pouco encabulado com tão vistosa manifestação de apreço, para dar por finda uma «passageira» briga.
Passando o braço pelos meus ombros, em jeito de tranquila amizade, alto e bom som, como sempre fazia quando no meio do «seu» público, afirmou a sua admiração por mim, pois apreciava pessoas de forte personalidade e que, como eu, juntavam a essa característica, a competência e dedicação pelo serviço. E, entregando-me um pacote com castanhas e uma garrafa de jeropiga, acrescentou: «E, meu rapaz, ficas sabendo que a partir de hoje, és 2.º piloto. Boa sorte!»
Foi desta maneira tão pouco protocolar, em pleno S. Martinho, que S. Ex.ª cumpriu a promessa de me promover a 2.º piloto antes do fim do ano.
Quanto ao tratamento por tu, deve-se ao facto de ter vindo a saber que eu também era ex-menino da Luz. É esse o tratamento tradicional entre ex-alunos do Colégio Militar, mesmo que se trate de um director da Aeronáutica Civil e de um pobre ex-traidor à Pátria! [15]
Muitas vezes, ao saberem que servi sob sua direcção na Aeronáutica Civil, vem a sacramental pergunta: «Como era ele?»
Meu pai, presidente da comissão de candidatura presidencial do General Humberto Delgado na cidade da Beira, fez-me a mesmíssima pergunta.
Não é fácil de responder.
Especialmente, ele queria que a resposta se referisse ao general, ao General-sem-medo. Ao homem em quem os democratas depositavam a esperança de uma mudança em Portugal.
Eu apenas conheci o Ten. Cor. Humberto Delgado, o «chefão» do SAC, que abusou dos «seus rapazes» para apresentar galinha gorda por pouco preço, o Major aviador com o curso do Estado Maior que aparecia por Sintra para realizar as horas de voo mínimas mensais ou trimestrais [16]. O homem que deu o tiro de partida para o que é hoje a nossa TAP, a Air Portugal deles. O homem inteligente, patriota, teimoso, sonhador, militar íntegro…
Foi esse o Humberto Delgado que eu conheci.
Como explicar «como era» o General-sem-medo [17], com quem não tive ocasião de ter qualquer contacto por me encontrar pelas Áfricas?Eduardo Alexandre Viegas Ferreira de Almeida, «Traidor à Pátria», in Quarenta Anos de Aviação, Martins & Irmão (impressor), 1995, pp.79-83.
[1] A T.A.P., ou os Transportes Aéreos Portugueses, foram criados pela Ordem de Serviço n.º 7, de 14 de Março de 1945, como uma simples secção de transportes aéreos no âmbito do Secretariado da Aeronáutica Civil. O Secretariado fora criado pelo Decreto-Lei n.º 33 967, de 22/09/1944 e Humberto Delgado nomeado seu director. Veio a ser transformada, a T.A.P., em Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada (Transportes Aéreos Portugueses, S.A.R.L.) em 1/6/1953 e nacionalizada em 1975.
[2] O estágio em voos das linhas da B.O.A.C. — British Overseas Airways Corporation — foi parte integrante do curso de pilotos que os primeiros aviadores da secção de Transportes Aéreos Portugueses foram fazer em Inglaterra para se poder arrancar com as Operações de Voo dos T.A.P.
[3] Divisão de Exploração de Transportes Aéreos, uma divisão da Administração da Direcção dos Serviços de Portos, Caminhos de Ferro e Transportes de Moçambique, criada pelo governo da colónia de Moçambique em 1936. Veio a dar no que é hoje a L.A.M., Linhas Aéreas de Moçambique.
[4] Divisão dos Transportes Aéreos da Direcção dos Serviços de Portos, Caminhos de Ferro e Transportes de Angola criada em 1938 pelo governo da colónia de Angola. Veio a transformar-se em 1973 na TAAG.
[5] Humberto Delgado.
[6] O «chefão».
[7] A «traição à Pátria», no conceito de Humberto Delgado, era servir na D.E.T.A., órgão da administração ultramarina. Tal o despeito vingativo!
[8] «Coagido» é o termo.
[9] No estágio do curso na B.O.A.C.
[10] Se não é que estava elaborado já antes…
[11] I.é, de acordo com as patentes militares dos pilotos e sem atender ao mérito das classificações no curso da B.O.A.C.
[12] O Major aviador Humberto Cruz.
[13] O Palácio Benagazil, muito provavelmente.
[14] Foi inaugurada em 31 de Dezembro de 1946, data da partida de Lisboa do 1.º voo regular da Linha Aérea Imperial dos T.A.P.
[15] Parece-me que somos hoje, cada vez mais, todos, ex-meninos da Luz!
[16] Refere-se a Humberto Delgado ainda com patente de Major aviador, que passava de vez em quando na Base Aérea da Granja do Marquês para cumprir os mínimos de horas de voo exigidos.
[17] O grande demitidor.
Joana Reis publicou um ensaio sobre o grande demitidor. O confrade Pedro Correia fez-lhe uma recensão. Deixei-lhe o meu comentário.
A coisa andou desapercebida até ao destaque nos Blog[o]s do Sapo. Com ele, destapou-se a cloaca do costume.
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