Quando os senhores do mundo passaram a ditar às trombetas da imprensa, rádio e TV que na moderna invasão da Cristandade só havia migrantes fiquei bem a ver o sofisma. O prefixo nos emigrantes ainda servirá para o portuguesinho, seja para denegrir a longa noite pela opressão e pelas malas de cartão, seja para dizer os emigrados atávicos dos amanhãs que cantam que, anafados já de liberdade ou carregados com canudos, mais não fazem a final do que o nosso Manel e a nossa Alzira que andavam lá fora a lutar pra vida, como o punha a castiça da Hermínia.
Macieiras à parte — que isto nem já é de saudades de velhos tempos, é antes de charanga de novos trampolineiros metidos a semideuses —, a omissão dos prefixos na transumância dirigida à Cristandade (e só a ela) obedece a um bem orquestrado catecismo. Imigrantes e emigrantes são de quando era natural ver o mundo daqui para lá, lá fora, e dizê-lo com a mesma naturalidade. Mesmo que fosse isso de falar e ver e pensar o mundo e tudo o mais, proibido pela odiosa censura. Como ao depois já não há censura, pelo menos da odiosa, não nos querem cá agora com distinções mundanas como daqui ou lá de fora. Há-de ser tudo inclusivo e global. E ai Deus se não for, que nos cai um ferrete de pecaminosa xenofobia nos lombos!… Valha-nos Deus, pois, porque será só ao aborígene da velha Europa…
Vai daí que nos cancelem imperativamente o prefixo às hordas que há anos são trazidas a invadir as nações da Cristandade com metódico empenho dos senhores do mundo inteiro e laborioso afã dos trombeteiros da linguagem: imigrantes e emigrantes são conceitos imorais de quando era permitido haver nações, povos. Já não é, mas, que os comuns não dêem por isso é o melhor para si. Assim, soframos a grosseira subtileza de nos seringarem com migrantes numa espécie de lavagem ao cérebro de matadouro, cultural. E adormeçamos serenamente da gente que somos. Ou fomos.
Enquanto não durmo aguardo com expectativa que os auto-eleitos deuses dêsse olimpo de pechisbeque que parece reger o mundo nos invadam a seguir de extra-terrestres. A ver se lhe também vão tirar o prefixo enquanto nos convencem que a invasão procede de Marte.
Sandokans e mobília dum indígena no carrinho das mudanças, ex-Lisboa — © 2023
Atêrro na R. Cor. Ferreira do Amaral, Alto do Pina, 1962.
Artur Goulart, in archivo photographico da C.M.L.
Os italianos recusam-se a comer insectos
Os nossos suseranos do Fórum Económico Mundial podem querer que comamos gafanhotos e que sejamos felizes, mas os italianos não estão para isso. O seu governo baniu o uso de insectos moídos na farinha das pizzas e nas massas. O Times diz mais:
O crescente uso de farinha [sic] de grilos, gafanhotos e larvas de insectos topou com feroz oposição na Itália cujo governo vai proibir o seu uso em pizzas e massas e segregá-la nas prateleiras dos supermercados.
Com receio [termos do Times para dizer recusa] de que os insectos possam ser associados à cozinha italiana, três ministros convocaram uma conferência de imprensa em Roma a anunciar quatro decretos destinados a proibi-lo. «É fundamental que estas farinhas [sic] se não confundam com a comida italiana», disse o ministro da Agricultura, Francisco Lollobrigida.
Plena de vitaminas, proteínas e minerais, a farinha [sic] feita de grilos é crescentemente vista como forma ecológica de obter nutrientes e prevê-se que atinja um volume de negócio de 3 500 000 000 dólares em 2029. A União Europeia autorizara já alimentos [sic] feitos de grilos, gafanhotos e de larvas de escaravelho. Em Janeiro foram acrescentadas à lista as larvas do bicho da farinha [pub].
Os ditos quatro insectos são abrangidos nos decretos italianos, os quais obrigam quaisquer produtos que os contenham a ser rotulados com letra garrafal e expostos separados de outros [sic] alimentos.
«Quem quiser comer estes produtos, pode, mas quem não quere, e calculo que há-de ser a maioria dos italianos, poderá assim escolher», disse o ministro Lollobrigida.
Quando os historiadores olharem para este tempo e se interrogarem do que frustrou o Grande Recomeço (Great Reset), pode ser que a recusa dos italianos em arruinar as suas amadas massas e pizzas venha a ser entendida como o catalizador.
Annibale Gianarelli, Tema de «Trinitá, Cowboy Insolente» no estúdio da rádio S.B.S.
* * *
Por falar em saber músicas de cór. Achei a notícia da estreia do Trinitá. Por Lauro António, quem mais, no Diário de Lisboa. Bigodaça, risco ao lado, cigarro ao canto da boca.
Estreou-se o filme em 3 de Março de 1972 no Avis e no Roma. Associei-o ao Natal, mas a memória é mesmo assim… O meu muito estimado J. Bernard disse-me que foi ao depois o filme dos voos da ponte aérea de Angola. Mais se entranha este filme na nossa história dos anos 70. Foi marcante. O tempo mais e mais o provou. Teve na estreia boa crítica do Lauro António. Os críticos de cinema costumam dizer tudo ao contrário, mas não foi o caso; fez-lhe boa crítica, pese embora a conclusão: — «Não se trata duma obra importante, está bem de ver.»
Pois, mas foi.
Como disse, o Trinitá deu nome por aí a bares, cafés, pastelarias e até a alguns pintas de risco ao lado, bigodaça e cigarro ao canto da boca...
E o assovio, os portugueses que sobrarem sabem-no de cór.
Lauro António, «Trinitá, o Obélix do Oeste» (Diário de Lisboa, 7-3-972).
Costumava ler os títulos dos jornais no quiosque. Já não há jornais. Sobram uns folhetos… E os quiosques, temo, alguns funcionam agora como T0 para o… ardina pardo de importação que vende neles cigarros (se vende) à hora do expediente. Nem sei de que viverá… Quiçá de subsídio à imigração (migração, digo; os imigrantes acabaram, com a globalização…)
Gostava de ler as gordas. Há pedaço pus-me a lê-las no quiosque do Sapo. Como tudo é virtual agora, pus-me a lê-las no quiosque do Sapo, um quiosque virtual. — Qualquer dia somos nós, as pessoas, virtuais; muitas serão mais gado; talvez daí…
E bem, li e gostei. Gostei desta. É periférica, diz-se a moça em oração adversativa. Pode ser que seja, seja lá isso o que seja. A ressalva de que pode parecer querida e fofinha é todavia o principal que se no fundo ela acha. Periférica será antes apresentação irreverente escondida com o rabinho de fora (na fotografia não mostra) vestida de pseudo qualquer coisa original, artística. Para dar estilo. Assim como estar empoleirada lá no cimo da monumental da minha terra o é e que, hoje por hoje, é paradoxalmente bastante central.
A tanto vai a periférica. Fica pelo telhado.
Bárbara (nome muito próprio…) Tinoco cresceu na linha de Sintra. Do subúrbio trepou à periferia que já vejo… Diz palavrões por tudo e por nada; mais prova da tal irreverência, com pitada valente de rebeldia. Palavrões são asneiras e asneira vem de asno… — Bem o caso.
Por fim, os portugueses sabem de cor [de côr ou de cór?] muitas das suas músicas.
Já não devo ser português.
Notícias Magazine, 19/III/23.
Aos novíssimos, promoção de vendas é português menos moço para dizer marketing. Marketing buffeiro, no caso. O que está bem: — o buff que tu precisas! Conhece [tu] as condições de financiamento pessoal… — Se não fosse pessoal seria financiamento quê? Empresarial? E tratar-se-ão as empresas por tu?…
O que não está bem é o «Informe-se no Montepio». — Que é lá isso?! Que deferência é essa ao freguês?! — Perdão, cliente. O cliente pode ser tuteado, mas não quere ele cá rafeirices de ser tachado de freguês, quere?!….
Buff!
Vislumbre do Monsanto ao Tejo por sôbre o Aqueducto, Campolide, Penha de França.
Antes da Av. de Calouste Gulbenkian (1967), mas já com o atêrro da ribeira de Alcântara.
Aqueduto das Águas Livres, Campolide, ante 1967.
Abreu Nunes, in bibliotheca d' Arte da F.C.G.
Em Setembro de 36 um punhado de marinheiros do aviso «Afonso de Albuquerque» e do contra-torpederio «Dão» amotinou-se. Queriam fazer-se ao mar a juntar-se aos republicanos na guerra civil de Espanha. O acto foi traição e o motivo ainda foi peor, mas lá que foi precisa fibra…
Hoje temos isto.
A planta dá a ermida de St.ª Rosa (A) onde se estabeleceu a paróquia por ter ruído a paroquial de Arroios. E fico a saber que era ao fundo do Caracol da Penha (8). Cuidei que era mais a cima, a chegar ao largo de Arroios. Estranho é sêr a freguesia do orago de St.º André. Havia de sêr a de S. Jorge.
A revêr, o Eng.º Vieira da Silva sôbre as freguesias…
«Parroquia [sic] de S. André», in Livro das Plantas das Freguesias de Lisboa, c. 1756-1768, f. 76.
A.N.T.T./C.F. – Códices e documentos de proveniência desconhecida, 153.
A toponímia é espontânea e não me causa estranheza. O caminho para a Carreira dos Cavalos (9) (Gomes Freire) derivou espontâneamente também, mais tarde, em Travessa do Abarracamento da Cruz do Tabuado onde veio a estabelecer-se o Instituto Agrícola, posteriormente Faculdade de Veterinária. Mas desconhecia o Olival da Penha (15) na vertente oriental. O caminho para Chellas (14) deveio em caminho de baixo da Penha (Av. do General Roçadas) e o seu seguimento é (era) a Rua do Sol a Chellas a partir do caminho para Xabregas (13), a futura circunvalação, caminho do Alto de São João ou, nos nossos dias, a Morais Soares.
O topónimo do Monte Agudo (D) anda um tanto esquècido, mas o caminho do Monte Agudo (12) da Forno do Tijolo (11) até lá é nada menos que a Heliodoro Salgado.
Curioso acima de tudo é que todos esses caminhos existem nos nossos dias, incluídos os do Arco do Cego (3) (Calçada de Arroios), da Charneca (4) (Rua Carlos José Barreiros e seu prolongamento na Manuel da Maia) e, claro, a estrada de Sacavém (5), de que muito tenho tratado.
Entretanto revi o que lêra em Vieira da Silva (Dispersos) e também em Roberto Dias da Costa n’ A Paróquia de S. Jorge da Cidade de Lisboa e trata-se do seguinte: a paróquia de S. Jorge ficava acima da Sé ao Limoeiro, instituída porventura quási logo a seguir à conquista de Lisboa em 1147. Com o terramoto passou à ermida do Senhor Jesus da Boa Sorte, às Olarias. Assim a vemos nêste livro da Tôrre do Tombo. Esteve por 1770-80 na ermida de Santa Bárbara (B) (ficava mais ou menos na esquina da Passos Manuel com a Jacinta Marto) que era do desembargador Ignacio Lopes de Moura, donde passou à ermida de St.ª Rosa de Lima nas casas dos senhores de Murça/Mesquitelas (onde consta que anos depois foi preso o Diogo Alves, em 1839) já depois de a paróquia de Santo André tornar à origem. Ali se manteve a paróquia de S. Jorge de Arroios até se levantar de raiz a nova paroquial de Arroios no lado N do largo, em 1829.
(Revisto. Legenda em 14 às 11.)
O conceito da cidade dos 15 minutos é relativamente recente, pelo que é normal que ainda possa ser desconhecido para alguns […] Na sua génese, pretende-se que os residentes de uma (pequena) cidade ou empreendimento que fica dentro de outra cidade maior possam ter acesso a qualquer serviço, a pé ou de bicicleta, em menos de 15 minutos.
(Marta Esteves Costa, « Cidade dos 15 minutos vai ser um conceito possível em Lisboa», in Dinheiro Vivo, 9/IX/22).O conceito foi originalmente criado por Carlos Moreno, Professor [sic] universitário, que é actualmente o membro destacado para o cumprimento deste ambicioso plano que Paris tem projectado até 2025.
(Manuel Banza, « Será Lisboa uma cidade de 15 minutos?», 3/I/21.)
A Marta parece que é carteirista de fundos de investimento imobiliário. Se fôsse publicista com carteira profissional percebia-lhe o frete remunerado a regurgitar o que sai das centrais de in… deformação. Assim não sendo, parece-me ela uma dos que sorvem e gargarejam da própria fonte (inquinada) de que não haveremos de possuir nada e seremos felizes, o que dá no mesmo. Noto ainda que escreve com prolixidade imobiliária: «empreendimento que fica dentro de outra cidade maior» é muito menos pindérico do que dizer «bairro»!…
Do Banza sigo o rasto e consigo desde logo medir o calibre à peça: o versículo «Desigualdade de Género na Toponomia de Lisboa» que lhe encima o estendal da exaltação intelectual não deixa dúvida. É um evangelista.
* * *
Quando meus pais casaram foram morar num bairro um nadinha fora de mão. Certa vez procurei à minha mãe por que não escolheu morar mais perto da tia, onde se criara?
Pois, não, porque quando se casou havia ali poucas casas à medida; havia algumas com muitos quartos cuja renda era incomportável; ao depois, eram casas antigas.
Foi em 1956.
O tal bairro um nadinha fora de mão teve projecto de urbanização em 1927, cumprido só numa parte devido a contencioso da C.M.L. com Francisco Lopes da Costa, o dono dos terrenos.
Francisco Lopes da Costa, comerciante, morador na Quinta dos Embrèchados, pediu à C.M.L. para construir um bairro de casas económicas nas terras do seu Casal ou Quinta da Porciúncula, também conhecido por Casal dos Ladrões. A C.M.L. acedeu. Conforme à proposta aprovada nos paços do concelho em Novembro de 1927 para suprir a falta de casas e fazer construir bairros económicos na cidade, a Câmara prescindia no caso da quarta parte dos terrenos a urbanizar que lhe cabia por lei. Os materiais das casas seriam fornecidos pelas fábricas e fornos do município a preço de custo.
Em Março de 1928 foi aprovado o plano do bairro. A 3.ª Repartição integrou-o com o da Firma Bloco que tinha em vista construir habitação económica em terrenos adjacentes, entre a Calçada da Picheleira e a Calçada do Teixeira. Caberia à Câmara fazer os arruamentos e os esgôtos, sêr parte nos contratos de arrendamento para garantir rendas contidas. As casas a construir não podiam ser vendidas, nem passar do 1.º andar.
Francisco Lopes da Costa recusou-se sempre a fazer escritura do acôrdo e resolveu substituir-se à Câmara deitando-se a abrir arruamentos, valendo-se do plano aprovado para vender terrenos e construir casas. O bairro nasceu assim clandestino.
É quanto valem planos bem gizados…
Anteprojecto de arruamentos destinados a habitações económicas entre a Calçada da Picheleira, linha férrea de cintura, Quintas da Conceição de Cima, dos Embrèchados e Azinhaga do Carrascal, C.M.L., 1928.
Em 1935 a Câmara resolveu taxar em 10$00 / m2 os terrenos para construção e o edificado já existente entre tanto, consigando a verba obtida às futuras obras de arruamento e esgôtos. Francisco Lopes da Costa tornou a recusar-se à escritura.
Em Abril de 1936 a Câmara deu sem efeito o plano do bairro, aceitando sòmente a parte feita, que ficou. Por 1946 andava a Câmara a meter os esgôtos e acabar os arruamentos. Em Julho de 45 comprara finalmente por 500 439$00 a Quinta da Porciúncula a Francisco Lopes da Costa. A escola da Cambra foi feita em 1956. Nos anos 60 estendeu-se o bairro para poente: o B.º de Santa Engrácia, chamava-lhe a êsse edificado nôvo a minha mãe, talvez pelo tempo levado a fazer-se. Pelo nascente nasceram barracas nesses anos. A paróquia teve a sua igreja em 1973 ou 74, desconforme do plano primitivo dos anos 20 e dalguns posteriores. Foi a igreja até construída depois já da praça, ou mercado municipal.
Obras municipais de arruamentos na Picheleira, Lisboa, 1946.
Eduardo Portugal, in archivo photographico da C.M.L.
Até aqui, história. Desfio agora o rol da memória.
Era eu cachopito de 3 ou 4 e lembra-me agora do que por essa idade havia no bairro: assim, logo ante a minha casa havia o talho do sr. Chico, o sapateiro do sr. Mestre (ou Semestre), a mercearia do galego.
Num raio de 100 m a mercearia do sr. Albino, a das espanholas mais além; o cabeleireiro da Ruth, duas padarias, uma sapataria de permeio. Mais cá, a taberna do Saraiva, com carvoaria de esquina, pipas alinhadas atrás do balcão, vinhos e petiscos e mesas de repasto de sólida madeira e tampo de mármore; em certas noites, fados, discretamente à porta fechada. Ao fundo do quarteirão do Saraiva, a taberna do sr. João, que tinha um galaró num poleiro sôbre o lavatório de canto e que morreu de velho, segundo uma crónica.
Virando o azimute, outra taberna ao fundo do quarteirão: o Zé da esquina. Até êle, primeiro, a leitaria do careca, ao depois a fábrica dos iogurtes Grande Ponto, a meio caminho o lugar da Leopoldina, lugar da hortaliça.
Na extrema lá do Zé da esquina, a drogaria do Soares que ao depois fechou e nunca mais abriu, mai-la escola e o campo do Vitória, quási a descair do bairro, num cabeço aplainado fronteiro ao cemitério oriental. — Cuido que nas guerras civis campearam por ali tropas do imperador do Brasil, ante os miguelistas fortificados no Alto de S. João. Ou talvez vice-versa, mas disperso-me.
Na rua de cima, o lugar do sr. Duarte na esquina oposta à pensão do França; para aquêle lado a Júlia cabeleireira, a papelaria ao lado do prédio amaricano, a galinheira Ana dos cabritos no gaveto com o Carrascal e o barbeiro na esquina da praceta. Para êste lado, a taberna do Agostinho ante a capelista, a drogaria do Aníbal, o café do Greno, a oficina do Horácio, outra taberna, mais uma mercearia.
No Carrascal, outra rua a cima, o vidraceiro, outra mercearia e mais que me já não lembra. Por ali, numas terras a par da casa das C.R.G.E., o improvisado mercado ambulante, onde ao depois o presidente da Câmara inaugurou a nova praça com fanfarra de holofotes da Radiotelevisão, que na altura ainda era Portuguesa.
Inauguração do mercado da Picheleira; banca da Helena das bananas, Lisboa, 1972.
Armando Serôdio, in archivo photographico da C.M.L.
Ao fundo da rampa do Vitória, onde era a sede do clube do bairro, havia ainda o Campo do Padre, ao depois chamado dos Telefones. Digno de nota: dois campos de bola — um cujo guarda era padre — num só bairro, sem igreja…
A sede do Vitória estava apetrechada do necessário salão de festas com palco, para bailes, carnavais e aulas de ginástica. No 1.º andar, sala de jogos: matraquilhos, bilhar, dominó, cavalinhos, damas…
Já na calçada, a rua direita do bairro (bem que curva e a descer; ou a subir para quem vem em sentido contrário), mais uma drogaria, do Nove Dedos, onde se compravam os livros da escola; duas lojas de roupa, dois fotógrafos, o pôsto de enfermagem num 1.º andar com grande letreiro, duas pastelarias, um talho, uma casa de velharias, salvo êrro e um marco do correio; as ferragens do Porfírio, a farmácia da dr.ª M.ª da Luz, o lugar do Madeira onde havia pão de milho e chouriço ressequido, a Bijuquinha, de que me recorda mal…
Adjacente, na velha azinhaga do Carrascal, a estância das madeiras, logo a seguir a uma vetusta mercearia de esquina e ao chafariz, reminiscências de 1900, se não mais (i.é, menos)…
À entrada, onde trazia a rua larga, serventia nova que substituiu a velha azinhaga que dantes levava ao lugar, o Zé dos Frangos — uma espécie de marco de assar no espêto à boca da zona mais nova do bairro nêste tempo, mais de dormitório e menos de comércio, à laia dos recentes subúrbios.
Esqueciam-me as explicadoras: a D.ª Amélia, a avó do Carlitos; e a outra D.ª Amélia, a do 8. Mais haveria que não sei… E o relojoeiro também na calçada, num r/c alto, logo a cima do Jaquim Nove Dedos.
Vai longo o rol. Deixo por tanto sem dizer duas ou três casas de pasto e o que mais havia calçada a baixo até à estação do combóio e que, a dizer verdade nem bem me já recorda. Porém e tomando daqui o combóio, sempre digo que de transportes (ou mobilidade, como dizem para aí os palermas) havia também desde 1948 ou 49 um autocarro, e ao depois mais outro em 1969 [1967], que corriam o bairro e faziam zona ao princípio da rua a par do jornaleiro. — E, pois, também o jornaleiro corria o bairro com pregão ao Diário Popular e à Capital. — Somavam-se aos transportes colectivos os automóveis e motorizadas dos vizinhos, que podiam ir e tornar nêles livremente a casa sem vigilância, portagem ou salvo-conduto oficial…
Que faltava?
Por ventura o cangalheiro, mas, avistava-se o cemitério…
Quiçá algum veterinário ou, mera loja de dar banho ao cão, mas bem vejo, o fungagá era doutro tempo. Os bichos ainda não eram como a gente. Antes que havia até mais ovelhas que bicharada doméstica pelas bandas lá do bairro.
E, bem!… Faltava a patôrra do Estado: nem esquadra de polícia, nem extensão da longínqua junta de freguesia ou conservatórias ou repartição de Finanças e ninguém dêle se queixava. Ao depois havia o necessário de serviços públicos: almeidas e carroça do lixo diàriamente; com freqùência mais uma vez os almeidas, a lavarem as ruas, a desentupir as sarjetas; bem assim os calceteiros a recompôr a calçada; e a carroça dos cães uma vez por outra.
Excedo-me na reminiscência. Devo acabar, pois. Porém, vale que assim fica cá extensamente contado como era provido há mais de cinqùenta anos o meu bairro. Tinha tudo o necessário ao dia-a-dia dos vizinhos. Nem seria preciso um quarto de hora para ter acesso a qualquer serviço (ou 15 minutos como só hão-de babujar os tôlos chapados dalguma inteligência artificial). Nem dez. Cinco minutos, se tanto, para ir ao pão, ao leite ao talho, à mercearia, à praça, à cabeleireira, ao baile, à bola. E a pé porque andar de bicicleta era visto como usar calções: salvo o desporto, só criancinhas se viam assim.
* * *
Comecei lá em cima com uma treta que propõe agora cidades dos 15 minutos, um conceito relativamente recente, apregoam. Parido originalmente (pfrrr!) por um tal Moreno, Professor universitário com pê grande, que é como o Banza no-lo apresenta.
Ora eu, que logo de pequeno vi o meu bairro como descrevo, provido de tudo essencial à vida quotidiana, cuido que qualquer um entende que tal sortimento de lojas, bens e serviços lhe afluíu tão espontâneamente como naturalmente se foi povoando, do modo como foi ganhando vida, enfim! De maneira que não vejo agora onde está a novidade desta patranha da Cidade dos 15 minutos — proximidade e bem-estar.
Não vejo por conseguinte que Lisboa ou outra cidade viva, com bairros consolidados há dezenas, centenas, talvez milhares de anos, precisem de nenhum ambicioso plano (ó, vã glória!) como o que Paris tem do tal Professor universitário Moreno, com u pequeno. O que vejo, não sendo ingénuo delírio de idiotas para torrar dinheiro, é mais uma moscambilha rapace e mal disfarçada para com ela infernizarem mais e mais a vida à gente.
Conselho de cidadãos [?!], Cidade dos 15 minutos; proximidade e bem-estar, Lisboa — © MMXXIII.
(Revisto ao meio-dia e um quarto de 11.)
Ou a diferença entre a graça duma encenação barroca e uma mise en scène de merde.
Alla Danza Baroque — dança barroca com a Marcha da cerimónia dos turcos (Lully) e a Folia de Espanha (Vivaldi).
Festival barroco no jardim real do castelo de Valtice, Morávia, 2015.
Coreografia de Raoul-Auger Feuillet (1710) e František Dofek (2013).
Tempos desgraçados êstes. Duma degradação civilizacional atroz. Nem sei mais o que dizer sôbre esta m… porcaria tôda que vejo à minha volta. Cada vez mais!…
Dum magnífico Handel, a voz sublime de Sabine Devieilhe dá-me tudo para me encantar. Mas só ouvindo porque o audiovisual, meu Deus!
Procurei-lhe uma alternativa à gravação de Dezembro de 2020 (maldito ano) com a orquestra Pigmalião, a que me mais agrada de Júlio César no Egipto (HMV 17, Acto II), «Se pietà di me non senti». Procurei-a pela miséria do mascaralho dos músicos da orquestra. Insuportável!
Pois, parecia…
O que me aparece é bem pior, dum nojo tal que nem sei que mais diga. — Voix sublime et mise en scène de merde...Que va-t-on encore demander aux chanteurs, grimper aux rideaux pour montrer leur talent?? Courage Sabine... é o comentário que lá achei e que diz tudo, simplesmente. Se ponho o filmezinho aqui é pelo exemplo do nível vergonhoso em que esta nossa civilização decai. Cuido que vamos até bem entregues ao diabo…
Sabine Devieilhe, Se pietà di me non senti
(Handel: Giulio Cesare in Egitto, HMV 17, Acto II)
Mal por mal… Porém só ouvindo e, tentar não ver os músicos, pois…
Sabine Devieilhe, Se pietà di me non senti
(Handel: Giulio Cesare in Egitto, HMV 17, Acto II)
Raphaël Pichon (maestro) e orquestra Pygmallion, Warner Classics/Erato, 2021
Diz a leizinha n.º 1212/93, de 22 de Abril:
CAPÍTULO III
Da colheita em cadáveres
Artigo 10.º
Potenciais dadores
1 — São considerados como potenciais dadores post mortem todos os cidadãos nacionais e os apátridas e estrangeiros residentes em Portugal que não tenham manifestado junto do Ministério da Saúde a sua qualidade de não dadores.
Quando se o Estado meteu a querer dar despacho à carcaça dos defuntos, ninguém me tira da idéia, fê-lo por sacar poder à Igreja, mas não por obra de misericórdia, que é como a Igreja propõe o enterrar os mortos. Do apoderar-se do que era obra de misericórdia da Igreja foi um passinho passar o Estado a lambuzar-se do cadáver da gente. Não para por misericórdia sua lhe dar sepultura digna, mas para lhe poder sem mais peias canibalizar a bel-prazer uns nacos para enxertia noutros que também hão-de a final morrer. Vai daí a leizinha iníqua para estribar o assenhorear despudorado do meu futuro cadáver. O meu, o dos nascidos e o dos vindouros por nascer. Isto quando já íamos eu e as gentes em geral com uns anitos e até umas décadas valentes a sermos senhores de nossas pessoas e a distinguirmos nìtidamente que o que é meu é meu, não é para o Estado colectivizar, incluídas as próprias entranhas, pois então! De mais, quem nas quereria? — Pois, olha: o Estado. E no caso, se obstasse eu à usurpação dos despojos sem vida da minha futura pessoa? Então que me mexesse antes de morrer e o fizesse saber por manifesta e expressa vontade ao tôdo-poderoso Estado, em impresso oficial, legìvelmente preenchido em maiúsculas e, em triplicado.
Magnânima condescendência!
A coisa não ficou por aí e tem tomado proporções tamanhas que vejo já o Estado a assenhorear-se da carcaça ainda viva de cidadãos nascidos como da de súbditos nascituros para lhe febrilmente injectar poções antigripais de eficácia curta para uma longa vida ou, em alternativa esquizofrénica, abreviar-lha — a vida, longa ou curta — com testamentos vitais e eutanásias. O cabresto que vai conseguindo arrear nas ventas dos pobres de espírito é bem sinal da coisa. A desculpa lá será a da saúde pública como poderá ser o ambiental, o sustentável, a igualdade ou qualquer outra paneleirice do género que a marcha dos tempos venha pondo em voga, venha tornando imperativo moral da moda, ou haja ainda agorinha decretado dogma pela nova ordem dos cultos. Na verdade o único critério que subjaz a tudo isto é o do Estado quere, pode e manda. O Estado põe e dispõe. E por conseguinte o afã em agir sem cerimónia por dono e senhor tanto da gente ao depois de morta, como dos vivos que estejam ou não para morrer já, sem embargo até dos nascituros que desgraçadamente hão-de nascer. O Estado quere a esmo e a eito poder compôr uns com bocados doutros, recompôr mais alguns aos bocadinhos com LGBTices, ou decompôr ainda mais outros, por inteiro e acabado, com os testamentos vitais e as tais eutanásias. De caminho impõe até sàdicamente em vida uma taxa de ocupação do subsolo aos que ainda não jazem sob sete palmos de terra antes que se achem êles mortos e lhe tornem, ao Estado, êsse bendito imposto incobrável. Pouco importa, no caso, que o defunto até acabe incinerado. É um fartar vilanagem!
É, pois, como vamos. De maneira que nem entendo haver ainda aí quem se espante do esbulho que o Estado prepara à propriedade privada de vivos se do mesmo modo que o já fez ao cadáver dos falecidos. É tudo do Estado, pois! Se a gente, viva, morta ou por nascer o já é!…
Vai Fauré pela Orquestra Filarmónica da Juventude de Cracóvia por atalhar ao azedume.
Gabriel Fauré – Pavane, Op. 50.
Orquestra Filarmónica da Juventude de Cracóvia. Maestro, Tomás Chmiel.
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