Domingo, 26 de Abril de 2009

Marques da Silva

 Marques da Silva porquê? — foi a pergunta que deixei por responder no Caracol da Penha. Ainda que um dos comentários lá haja dado já a solução (habilmente colhida na Toponímia da C.M.L.), não deixa de ter interesse — cuido eu — para o benévolo leitor curioso de novidades antigas, a história da demanda do topónimo pelo ilustre olisipógrafo e amigo de Lisboa, Luiz Pastor de Macedo. Ei-la, a demanda do Marques da Silva da rua do dito, tresladada abaixo em pública forma. Se bem que um pouco extensa, pode o leitor apreciar nela a uma vez o belo estilo e o método simples, mas rigoroso, do ilustre autor da Lisboa de Lés-a-Lés:

« [...] Perguntemos agora: Marques da Silva porquê? quem foi aquele senhor? que fêz ele? Marques da Silva que conhecêssemos com probabilidades de merecer consagração municipal por intermédio duns letreiros de tinta preta pintados nas esquinas de qualquer artéria, só nos lembrávamos de um, o arquitecto Adolfo António Marques da Silva, que foi um dos fundadores da Associação dos Arquitectos Portugueses, o auxiliar de Parente da Silva nos trabalhos preparatórios para o projecto de restauro da Sé, etc. Mas este Marques da Silva não podia ser o que ficou memorado nos cunhais do antigo Caracol da Penha porque tendo nascido em 1876 não podia com 15 anos de idade merecer a atenção dos edis lisbonenses. Que Marques da Silva era pois aquele? O padre António Marques da Silva, ex-frade dominicano, que publicou dois sonetos e uns Erros de concordância do relativo «cujo» demonstrados e emendados em 13 páginas, segundo informação de Inocêncio, e que acabou os seus dias empregado na Biblioteca Nacional? Ná... Não víamos ponta por onde se lhe pegasse... E fomos ao local. Talvez nos dísticos camarários houvesse alguma indicação. E havia, sim senhor. Lá estava Rua Marques da Silva — 1844/1907 — Escritor.
  O leitor que não se dá ao trabalho inglório da investigação, mal adivinha a alegria que experimentam os rebuscadores de novidades antigas, quando, perante um caso fechado se encontra, laboriosamente, uma porta de entrada. Não é a sorte grande, por certo (que nós não sabemos o que é ser-se contemplado com a sorte grande da Santa Casa) mas é a sorte que dá uma alegria que por sua vez garante umas horas ou dias, conforme o alcance da descoberta, de esplêndida disposição. Pois nós, depois de termos passado um ror de tempo a querer vislumbrar o autêntico Marques da Silva, através de mil hipóteses formuladas de parceria com os nossos botões, não tivemos uma alegria ao lermos o dístico da artéria, tivemos e justificadamente um alegrão. Pronto. O Marques da Silva era afinal um escritor que tinha nascido em 1844 e que falecera em 1907. Não era tudo, evidentemente, mas era quási tudo.
  No entanto — confissão completa, que o leitor merece a nossa consideração e a nossa confiança — no entanto a‑par da nossa alegria, ìntimamente, muito ìntmamente, revirava-se com certa irreverência uma pontinha de despeito. Sim. E bem vistas as coisas, a pontinha de despeito tinha toda a razão em revirar-se no nosso íntimo, travando e arrefecendo um pouco o nosso alegrão. Na verdade era imperdoável que não soubéssemos que tinha havido um escritor Marques da Silva e para mais um escritor que tinha merecido uma homenagem municipal. Mas se a pontinha de despeito, passados os primeiros momentos, refreou a alegria, a alegria, por sua vez não consentiu que nos sentíssemos excessivamente envergonhados perante a nossa indesculpável ignorância. E começámos a deitar abaixo as nossas prateleiras à procura do escritor que com certeza todos conheciam excepto nós.
  Trabalho baldado. Nem um breve rastro se nos deparou. Decidimo-nos então a perguntar e escolhemos claro está o nosso amigo mais íntimo. Sempre é menos vexactório mostrarmos a nossa ignorância a um amigo íntimo.
  — Ora diga-me cá. V. sabe quem foi o escritor Marques da Silva?
  — Quem?
  — ... Aquele que mereceu em vida pintarem-lhe o nome nas esquinas do Caracol da Penha...
  — Marques da Silva?

  — Sim. Que faleceu em 1907...
  E quando esperávamos que o nosso amigo exclamasse admirado: — Pois V. não sabe quem foi? Essa agora..., etc. etc. — respondeu naturalmente:
  — Não. Marques da Silva que fosse escritor, não me recordo de nenhum...
  Mais afoitos, perguntámos a outro amigo, depois a outro, em seguida a outros, por fim a todas as pessoas do nosso conhecimento que encontrávamos. Não. Marques da Silva e então um Marques da Silva que merecesse como escritor aquela homenagem muncipal, ninguém conhecia, ninguém se lembrava...
  Fomos em seguida aos livros de actas das sessões camarárias e dispostos a ir ao fim do mundo se nos palpitasse que só lá descobriríamos o decantado escritor. Mas felizmente não tivemos necessidade de passarmos das actas. Na que diz respeito à sessão de 25 de Setembro de 1891 lá está patente em bom cursivo o Marques da Silva almejado. Caiu-nos porém a alma aos pés. O Marques da Silva que se tratava não nascera em 1844, não falecera em 1907, nem fora escritor... Então? Era ao tempo um comerciante que morava na rua dos Anjos e que era proprietário da célebre Quinta da Imagem, ali ao Caracol da Penha, ao virar para a rua de Arroios, quinta da qual o sr. João Marques da Silva, — era este o seu nome — ofereceu uma fatia à Câmara para alargamento da travessa do Caracol! E lá vimos que foi nessa sessão que o vogal da Comissão Administrativa do Município, sr. Costa Lima, propôs, e foi aprovado, para que a travessa passasse a ter o nome do proprietário local que contemplou a cidade com aquela nesga de terreno da sua quinta.
  Ora veja lá o leitor como estas coisas são!
  Mas ficava ainda um caso por resolver: o dos letreiros com a indicação do homenageado ter sido escritor e ter nascido e morrido em tais datas. Que estava mal, estava; mas as indicações também não tinham sido postas ali à toa. Tratava-se pois, evidentemente, duma confusão. E o escritor Marques da Silva aparecia outra vez. Com que homem de letras se teria confundido o Marques da Silva da Quinta da Imagem? Continuámos percorrendo a vereda das pesquisas, até que por fim chegámos à conclusão de que o escritor que os serviços camarários supunham estar memorando nos dísticos da artéria era o Salvador Marques que também era da Silva e que na verdade nascera em 1844 e falecera em 1907. Deve-se porém notar que o escritor dramático Salvador Marques foi sempre conhecido por este nome e nunca por Marques da Silva.
  E basta. Ponhamos de lado este assunto mas já agora convidemos a Ex.ma Câmara a apagar dos dísticos da torcicolada via pública as datas que lá estão e a substituir o adjectivo escritor pelo de benemérito.

Luiz Pastor de Macedo, Lisboa de Lés-a-Lés, vol. IV, Pub. Culturais da C.M.L., Lisboa, 1968, pp. 54-58.


 À Quinta da Imagem lá iremos... a seu tempo.


Rua Marques da Silva, 44 (antigo nº 7 ou 9?) e Av. Almirante Reis, 107 (actual 113), Lisboa, 1898-1908.
Arquivo Fotográfico da C.M.L..

Escrito com Bic Laranja às 13:32
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4 comentários:
De Paulo Nunes a 26 de Abril de 2009
Nem imagina o prazer que me deu ler a história desta rua. Frequento a zona desde miúdo por motivos de trabalho dos meus pais.
Rogo-lhe que não se esqueça da sua promessa de contar a história da quinta da imagem (embora não o conheça, não me parece que seja como outro sr que tantas promessas fez e depois de eleito poucas cumpriu)
Os melhores cumprimentos para todos.
De T a 27 de Abril de 2009
Estou a ler o texto e a imaginar o Pastor Macedo a dizer encerre-se o assunto e vamos a uma almoçarada:)
Pena a minha patroa Dona Câmara não reeditar todo o acervo que está esgotado!
Cumprimentos senhor Bic e agurdando da Imagem a história:)
De APS a 27 de Abril de 2009
Muito interessante esta história do "Escritor" Marques Silva.
Também nesses tempos existiam enganos "de se lhe tirar o chapéu".
Tenho três livros de Lisboa de Lés-a-Lés, falta-me este quarto.
É uma pena não fazerem reedições, entretanto vamos lendo no seu blogue o que aquele grande olisipógrafo ia investigando.
Cumprimentos.
De Bic Laranja a 28 de Abril de 2009
Paulo Nunes: Grato pela estima em que me tem. A promessa mantém-se. // Dona T.:Se há coisa que não enetendo é a falta de reedição destas obras. Deve ser coisa de pequena renda, embora de grande alcance cultural, e a Câmara parece mais interessada em grandes obras, sim, mas doutro género. // A.P.S.: Este 'catrapesquei-o' há pouco tempo num alfarrábio no Poço dos Negros. Só assim consegui completar a obra. A Câmara neste particular é duma pobreza atroz. // Cumpts. aos três.

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