Domingo, 30 de Janeiro de 2011

Nos ermos do Bom Sucesso

Gaiola de vidro

Como paredes através das quais
o mundo vemos pelo ser dos outros,
quem vamos conhecendo nos rodeia,
multiplicando as faces da gaiola
de que se tece em volta a nossa vida.

No espaço dentro (mas que não depende
do número de faces ou distância entre elas)
nós somos quem nós somos: só distintos
de cada um dos outros, para quem
apenas somos uma face em muitas,
pelo que em nós se torna, além do espaço
uma visão de espelhos transparentes.

Mas o que nos distingue não existe.

 

Travessa do Arco da Torre [adjacente ao Largo da Princesa], Bom Sucesso (E. Portugal, 1939)
Travessa do Arco da Torre [adjacente ao Largo da Princesa], Bom Sucesso, 1939.
Eduardo Portugal, in Arquivo Fotográfico da C.M.L..

 

«[...] No entanto a palavra gaiola retinha, no contexto, uma alusão à liberdade que cada vez mais eu via que não há, e que, contraditoriamente nenhuma solidão me daria. Levantei-me para ir visitar a Torre. Mas, quando já descia uma das azinhagas [...] vi um homem, que me olhava com pasmo, encostado numa das esquinas, ao sol. Por certo espantava-se de ver um fulano parado na rua a escrever e, ou já ali estava e observara-me enquanto eu escrevera, ou parara precisamente assistindo à cena para ele insólita. É possível que a minha insatisfação com o final [do poema] tivesse já sido a intromissão, de que eu não fora consciente, de um olhar fito em mim.. Guardei apressadamente o papel no bolso e estuguei o passo [...]»

 

Rua do Arco da Torre, Bom Sucesso (E. Portugal, 1939)
Rua do Arco da Torre [estrada do Forte, adjacente à Fábrica do Gás], Bom Sucesso, 1938.
Eduardo Portugal, in Arquivo Fotográfico da C.M.L..

 

« Estava já perto da Torre, cuja imagem me distraiu. Não a via completamente, porque a muralha [da Fábrica do Gás] que se continuava do baluarte do Forte [do Bom Sucesso] me encobria a sua parte mais baixa. De resto, o que aparecia à minha frente, ao seguir pela estrada de macadame escuro, era a porta do Forte, que se abriria na parede inclinada, se não estivesse, como estava, apenas entreaberta, e sem sentinela à vista. Diante dela, obliquei à esquerda, entre o baluarte e um muro vermelho acima do qual brilhavam montes de carvão. Passada a aresta do baluarte, um não extenso descampado, com esparsas ervas altas e pequenos montes de lixo e caliça, prolongava-se até à borda da muralha. Fui por ali em direcção à Torre, tal como, pelas azinhagas e sem vê-la, me orientara até à estrada do Forte. Nas proximidades da Torre, e contornando-a a alguma distância só pelo lado de que eu vinha, a muralha descia em rampa meio desfeita para uma praia suja. À beira de água, corriam e saltavam rapazes, uns de cuecas rasgadas, outros inteiramente nus, cujos montes de escassa roupa coloriam espaçadamente o sopé da Torre. Quando me vislumbraram descendo à praia, uns correram a esconder-se atrás da muralha que avançava do Forte, enquanto outros precipitadamente corriam para as roupas. Por certo me haviam tomado por qualquer guarda que os impedia de tomar banho ali, ou que por vezes passava para impor decência aos que andassem nus [...] Eu afastei-me para contornar o monumento e achar a entrada, do outro lado. Na sombra, junto das escadas enterradas parcialmente na areia estavam duas mulheres com dois homens que pararam de rebolar-se por cima delas, quando assomei na esquina. A porta estava de facto fechada. Os quatro, sacudindo-se da areia, ficaram a olhar-me suspeitosamente. Muito mal-encarados, os dois homens pareciam avaliar a minha carteira. As duas mulheres eram menos que prostitutas: no riso alvar que lhes estagnara nos rostos, havia a marca de vadias de arrabalde, entregando-se por uns cobres atrás de um tapume, sobre um monte de lixo. Para mostrar que era a Torre o meu fito, subi os degraus e bati à porta. Um dos homens, atrás de mim, disse: — Não está aí ninguém.»

Jorge de Sena, Sinais de Fogo, Público, Lisboa, 2003, pp. 504-509 passim.

 

Forte do Bom Sucesso, Pedrouços (E. Portugal 1939)
Forte do Bom Sucesso, Lisboa, 1939.
Eduardo Portugal, in Arquivo Fotográfico da C.M.L..

 


Notas:

1) O tempo da narrativa é 1936, concretamente na véspera da Revolta dos Barcos (8/9/1936). Segundo diz D.ª Mécia de Sena na introdução desta edição dos Sinais de Fogo, Jorge de Sena percorreu os arredores da Torre de Belém em Setembro de 1939, no regresso duma temporada na Figueira da Foz. Foi nessa ocasião que escreveu o poema Gaiola de Vidro. Transpôs circunstâncias reais desse episódio da sua vida para o tempo do romance fundindo-as com a História; também no romance, Jorge, tornara a Lisboa vindo da Figueira. A descrição da porta entreaberta do Forte, o façanhudo sargento da guarda desvendando que o Forte está em prevenção, o laxismo da sentinela que o autor relata pouco depois neste episódio do livro são, talvez, uma ironia ao desfecho da Revolta dos Barcos, pois, insinua o autor, o governo sabia da iminente revolta e deixou-a dar-se para daí colher dividendos políticos. A bateria do Forte do Bom Sucesso, a par da do Alto do Duque, detiveram os dois navios amotinados (o aviso Afonso de Albuquerque e o contratorpedeiro Dão) de desertarem para se juntarem aos Republicanos na guerra civil de Espanha; logo depois foi criada a Legião Portuguesa e endurecida a vigilância do Estado contra actos sedição.
2) O caminho do Largo da Princesa para a Torre descia pela Travessa do Arco da Torre, passava debaixo da casa do arco onde se abria uma largo, e seguia após cruzar a linha de caminho de ferro, direito ao Forte do Bom Sucesso pela Rua do Arco da Torre — esta rua ainda hoje existe com os seus muretes através do jardim agora fronteiro ao monumento aos soldados do Ultramar; em frente à porta do Forte passava a rua que ligava a Torre de Belém à praia de Pedrouços, já a jusante do Forte. Jorge de Sena não se refere ao caminho de ferro que se entrepunha entre a casa do arco e a rua que levava ao Forte, no entanto refere-se à rua que ia do Forte à praia de Pedrouços, uma estrada militar, por onde a ludibriada sentinela deixou seguir Jorge a troco dum cigarro.

Escrito com Bic Laranja às 09:45
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