Quarta-feira, 12 de Setembro de 2012

«Há» por... «há»

Grammatica Portugueza pelo Methodo Confuso, Rio de Janeiro, 1928 

 Em «há» por «havia» houve alguns leitores a dizerem-me dos matizes do discurso directo e do tempo do enunciado (tempo do narrador) como motivo para emprego de «há» e não «havia». É verdade, mas sucede que um caso assim é outro caso (passe a repetição). Vede um exemplo mui antigo.

« — Señor amigo [...] saberdes [1] q̃ me prouue e praz serdes asy prestes como dizẽ que sodes [sois] porq̃ dias ha [2] q̃ esta mesma vontade tijnha [3] eu de vos hyr buscar hõde q̃r que fossees [fôsseis] [...]»
Mendes dos Remédios (rev.), «Chronica do Condestabre de Portugal», França Amado, Coimbra, 1911, p. 175.

 O caso é que «há» não se acha aqui por «havia». Acha-se «há» por si mesmo, por «há», como fácil é de entender.
 Epiphanio Dias diz-nos na sua «Syntaxe Historica Portuguesa» (§ 253. a) 1): — «Designa-se com o imperfeito o que tendo começado anteriormente, continuava ainda no tempo em que se deu um facto: Estava naquella casa havia 4 meses.» — Quanto se não ouve nem vê hoje: estava naquela casa 4 meses? — Se a coisa parece confusa, cheia de matizes, ou caucionada pelo uso e entrevista até em autores de noemada, pois bem: os nossos antigos não se equivocavam. Não achei um único desacerto do tempo na «Coronica» do Condestável (cfr. com Correio da Manhã). O levantamento é exaustivo.

— « E como quer que muyto tempo auia [2] que a ella chamauam dona [...] » (p. 11)
— « [...] por que pouco tempo auia que entrara e correra [4] grande parte dAntretejo e Odiana:» (p. 17)
— « [...] e q̃ dias auia que o muyto desejaua.» (p. 46)
— « [...] dias auia que o conhecia por boõ.» (p. 47)
— « [...] ja auia hũ dia q̃ Nunalurez era na cidade.» (p. 55)
— « [...] poucos dias auia que vierõ [4] de Guimarães.» (p. 105)
— « [...] porque dias auia que pera ello [isso] eram chamados e percebidos.» (p. 135)
— « E veendo como auia dias q̃ se nom fezera [4] nenhuũ a obra da parte dos portugueses:» (p. 164)
— « [...] porque auia muyto que nom forom [4] em nenhuũa obra.» (p. 165)
— « [...] dias auia que tijnha em vontade.» (p. 174)
— « E que a sua mercee sabia bem que dias auia que lho auia outorgado [...]» (p. 192)
— « Ca [porque] elle nõ as tinha tẽpo auia.» (p. 205)


[1] Não é novidade (literalmente) o tratamento antigo dum interlocutor na 2.ª pessoa do plural, uma elegância de linguagem completamente perdida que nos só empobrece o idioma. Já quando a aprendi na instrução primária, era sempre a conjugação mais difícil; o sr. Diniz foi o único interlocutor da minha infância a quem na eu ouvia correntemente.
[2] Uso medieval mais comum do verbo no fim da oração — «dias há»/«tempo havia» — mais próximo do Latim.
[3] Em «a mesma vontade tinha eu» (pret. imperf.) surge-nos só aparentemente a acção no passado; vem, com «tinha» a acção elipticamente a ser no presente, no tempo do narrador que nos fala previamente na primeira pessoa do presente: «me prouve e praz serdes assim»; por conseguinte, «vontade tinha [e tenho] eu de vos ir buscar». Demonstrado está que este caso não é de «há» por «havia».
[4] Forma do pretérito mais-que-perfeito que os nossos antigos empregavam pelo imperfeito e pelo condicional («Mas, em tanto que cegos e sedentos // andais de vosso sangue, ó gente insana, // não faltarão cristãos atrevimentos // nesta pequena Casa Lusitana: //  de África tem marítimos assentos; // é na Ásia mais que todas soberana; // na quarta parte nova os campos ara; // e, se mais Mundo houvera, lá chegara.» Lusíadas, VII, 14).

(Imagem surripiada dum sebo brasileiro e adaptada. Verbete ligeiramente revisto em 14/IX.)

Escrito com Bic Laranja às 17:03
Verbete | comentar
20 comentários:
De [s.n.] a 13 de Setembro de 2012
Muito interessantes os exemplos que nos deixou. Mas também lhe digo que num ou noutro caso - conforme aliás dá a entender ser perfeitamente possível - eu era bem capaz de empregar o HÁ em lugar do HAVER tendo a perfeita noção de não estar a cometer um erro gramatical/verbal.

Por outro lado reparei em algo que já era do meu conhecimento: o modo mais-que-perfeito a substituir o condicional no séc. dezasseis pelo nosso Maior Poeta (lexicografia oriunda de séculos anteriores, presumo). Tempo verbal, este, que curiosamente se prolongou até aos dias de hoje mas que raramente (ou nunca, para ser mais precisa) se encontra na literatura contemporânea. Em contrapartida eu utilizo-o volta e meia simplesmente porque aprendi a empregá-lo sempre que numa sintaxe lógica tal se viesse/venha a pôr.

Um pequenino post-sriptum. Achei curioso aquele seu exemplo dado na seguinte frase: "hei (tenho) vinte anos que viajo sempre para o mesmo país". Tem graça, eu ouvia pessoas, poucas é certo, a falar nestes termos (substituirem o Haver pelo Ter) quando era miúda. Mas creio que esse modo original de nos expressarmos, oralmente e por escrito, entrou em desuso não sei porquê.
Maria
De Inspector Jaap a 14 de Setembro de 2012
Será que se refere a
"...e se mais mundo houvera lá chegara"?
Então estou mais que de acordo, eu, que não passo de um curioso da Gramática!
Louvo-lhe, entretanto, o trazer à colação o “Maior Poeta”, que tão esquecido anda nestes tristes dias pelo jet-6 ” que enforma o “escol” escatológico do rectângulo. Que diabo, não merecíamos isto!
Calorosos cumprimentos
De Inspector Jaap a 14 de Setembro de 2012
... refere a frases do tipo...
....
Peço desculpa pelo lapso; vá lá a gente saber por que é que a frase apareceu truncada... "hi-tech mysteries"
Cumpts
De [s.n.] a 14 de Setembro de 2012
Refiro-me exactamente a essa expressão.
Quer exemplos? Ei-los:

- Dado o estado lastimoso da nossa economia, nas medidas por si tomadas o Sr. 1º. Ministro não está a ir tão longe quanto poderia. Mais se esforçara e mais alcançara.

- No que à política se refere estou d'acordo com os tópicos abordados por Vª. Exª. Mais escrevera e mais acertara.

E muito agradecida pela sua generosidade.
Maria
De [s.n.] a 14 de Setembro de 2012
Um esclarecimento. Está igualmente correcto se substituirmos a conj. copulativa por uma vírgula, já que têm o mesmo valor numa proposição.

Assim: mais se esforçara, mais alcançara; mais escrevera, mais acertara.
Mais
De Inspector Jaap a 15 de Setembro de 2012
Obrigado por me ter enriquecido a cultura! :::::)
Cumopts
De Bic Laranja a 14 de Setembro de 2012
O verbo «haver» gasta-se. O «ter» avança e no Brasil não há senão «ter».
O mais-que-perfeito simples aparece na escrita. Na oralidade é muito raro; ouve-se só o composto. Empobrece-se o idioma. Em compensação forra-se de ganga amaricana e doura-se de pechisbeque marketeiro. Gráficos de encher o olho dão muitas mais-valias (não é só como dizem?) e vendo o balanço à séria é só perda de valor.
Cumpts.
De [s.n.] a 15 de Setembro de 2012
"... à séria"?!? Está a brincar, não está? Torna-se evidente que sim:)

Ou será que o substantivo masculino "sério" já virou (à brasileira) feminino e eu não dei por isso?
A gente nova (e menos nova) di-lo desse modo a toda a hora, mas esta pensa que se o vocábulo vem antecedido de um artigo feminino, é forçoso que o substantivo também o seja. Esta maneira da miudagem se expressar está de tal modo enraizada que até acho que os professores já nem corrigem os alunos quando estes assim se pronunciam. Da maneira desastrosa como o ensino anda, é mais do que certo que aqueles julgam que a expressão está correctíssima e serão porventura os primeiros a repeti-la nas aulas...
Maria
De Bic Laranja a 15 de Setembro de 2012
É uma coisa danada, a linguagem. Entranha-se por imitação e às duas por três não se estranha. É como perguntar a alguém que nos esperou e já segue caminho connosco: «esperavas ali há muito?» ...
Cumpts.
De Inspector Jaap a 15 de Setembro de 2012
Ora aí tem!
Cumpts
De Inspector Jaap a 15 de Setembro de 2012
mas alguém sabe alguma coisa de Gramática hoje em dia? (perdão, oje endia?)
Pretérito imperfeito???? que raio é isso?????
Cumpts
De Bic Laranja a 16 de Setembro de 2012
E nem lhe falo no modo conjuntivo!...
Cumpts.
De [s.n.] a 16 de Setembro de 2012
Concordo. Ou trocando os termos e parafraseando Pessoa "primeiro estranha-se, depois entranha-se".
Na frase que cita e nos dias que correm, de facto só se poderia encontrar o verbo Haver conjugado desse modo em discurso escrito erudito - na literatura contemporânea, é que nem pensar! Quanto ao discurso oral e tomando o exemplo referido, raríssimas pessoas, se é que existe alguma, seriam capazes de colocar o verbo no tempo e pessoa correctos.

Mas tomando os seus úteis e incansáveis ensinamentos à letra..., não há como remar contra a maré:))
Maria
De Bic Laranja a 16 de Setembro de 2012
Rememos, pois, contra a maré Coca-Cola. O português tem necessàriamente mais com o vinho do Porto.
Cumpts. :)
De [s.n.] a 19 de Setembro de 2012
No meu primeiro parágrafo, acima, devia estar escrito "... era bem capaz de empregar o HÁ em lugar do HAVIA..." e não do "HAVER", como fàcilmente se deduz.
Maria
De mujahedin a 16 de Setembro de 2012
Viva!

Achei muito curiosa esta forma:

‹‹...da minha infância a quem na eu ouvia...››

Conheço esta forma de falar, mas ignorava que se pudesse escrever. Pode-se, efectivamente?

Não sou grande entendido em gramática. Apoio-me mais numa espécie de intuição do que em regras concretas. Essa intuição sugere-me que parece ter mais lógica com hífen:

‹‹...da minha infância a quem-na eu ouvia...››

Gostava de saber mais sobre este curioso aspecto...
De Bic Laranja a 16 de Setembro de 2012
Poder, pode.
Dito era já a Lamentor que o cavaleiro entrára: mas êle não no viu senão quando já o achou junto de si, dizendo-lhe palavras de consolação.
(Bernardim Ribeiro, Menina e Moça, X.)
Representa fala popular, nessa medida a gramática, que se aburguesou, proscreve-o no caso dos exemplos.
Fora de ironia, trata-se duma vulgar epêntese para desfazer o hiato entre duas vogais; no caso uma nasal (ãe/em, ão/am) e uma oral.
Sucede pacificamente com pronomes enclíticos em conjugações como «dizem-no» ou «chamam-no» p. ex. Naturalmente que a sua sugestão de escrita se acerta melhor com este caso.
Cumpts.
De mujahedin a 16 de Setembro de 2012
Obrigado pelo esclarecimento!

De Sc a 19 de Setembro de 2012
Em todos os exemplos que refere o verbo não pode estar senão no passado: em nenhum dos exemplos a acção se prolonga até ao presente.
Pelo contrário, "Estava aí há muito tempo?" perguntamos nós quando temos medo de ter feito esperar outrém. E respondem-nos, simpaticamente: "Não! Estava há um bocadinho só". E isto é português correcto.
De qualquer modo, e pela parte que me toca, agradeço-lhe o que vou lendo, sempre com gosto, neste "blog".

De Bic Laranja a 17 de Junho de 2013
Obrigado eu!

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