Há tempos topei com um naco de prosa que diz bem o que são os reformadores de ortografias.
« É tão disparatado afirmar que escrever uma palavra com menos letras aproxima a grafia da fonética como afirmar que imaginar um cisne com menos penas torna a nossa imagem mental do cisne mais "próxima" do cisne real.
Uma das motivações da reforma de 1911 era a ideia de que a "ditadura da etimologia" contribuía para o aumento do analfabetismo. Mas sendo assim não se compreende como os utentes do inglês não são maioritariamente analfabetos. Será que afinal não há qualquer correlação entre a ortografia e o analfabetismo? Na verdade, a ideia de "aproximação" à fonética para combater o analfabetismo é apenas um disfarce para o preconceito social. Escrever "filosofia" com "f" em vez de "ph" simplifica a escrita mas isto nada tem a ver com "aproximação" à fonética. A ideia subjacente é que os pobres são muito burros e precisam de uma ortografia muito simplificada, em vez de receberem simplesmente um ensino de qualidade. Dizer que assim ficamos mais "perto" da fonética é uma forma equivocada de dizer que as palavras ficam mais acessíveis ao escrevinhar do povo, tornam-se mais "intuitivas", do mesmo modo que a música pimba é mais "intuitiva" do que a música de Bach. É mais uma vez a defesa da ideia de que mais vale dar um peixe do que ensinar a pescar. Em vez de dar às pessoas os instrumentos para escreverem bem, reforma-se a ortografia.
[...]
Ciente disto, Fernando Pessoa recusou a imposição dos reformadores e continuou a escrever "monarchia", "cysne", "philosophia", "physica", etc. A reacção dos reformadores é tipicamente paternalista: se os "artistas" querem escrever "philosophia", nenhum mal daí vem ao mundo. Os "excêntricos" serão sempre excêntricos. "Com o tempo habituam-se". Aparentemente as reformas destinam-se àqueles que os reformadores consideram que estão abaixo de si, daí sentirem-se tão naturalmente no direito de impor-nos as suas ideias ortográficas.»
Vítor Guerreiro, «Ortografia, fonética e grafia», in Crítica [revista de filosofia], 20/V/2009 [sublinhado meu].
Esta categoria de gente paternalista, que se cuida por sobranceira razão ungida dos deuses para cuidar da felicidade alheia, gira na espiral da sua estupidez, inconsciente. Evangeliza nos corredores da política, missiona nos gabinetes do eduquês, catequiza nos microfones da rádio e TV. Uma raça pegada de estúpidos de serviço e idiotas úteis, toda uma civilização brota destes calhaus, uma nova idade da pedra, em que os amanhãs cantam já hoje.
*
* *
Tenho para mim que a estupidez em se pondo a girar é um moto-contínuo. Na sua voragem dá connosco, azémolas ou não, numa raça de asnos. Cuido que em caindo por si na bárbarie mais primeva, esta raça asinina em gestação não há-de senão extinguir-se catastròficamente por cúmulo de vulgar asneirada. A estupidez consome tudo em redor e consumir-se-á por fim até se exaurir -- paradoxal demonstração, esse laborar autofágico da estupidez, da certeza das leis da termodinâmica que dão como impossível, afinal, um moto-contínuo. -- Até chegar a esse fim derradeiro, porém, a razão mais avisada que clame em alerta é irremediàvelmente devorada pela maldita estupidez. Em abono dela anda aí o gramático Bichara, cuja tarouquice me vai infrene derretendo o português: no pasquim mais expressamente acordita não há boa razão que vingue; só a saga da estupidez lá prospera, seguindo no seu devir de tragar jornalistas, leitores e qualquer memória futura que sobejasse de atributo sério ao papel de jornal. Veja-se, pois, se não é?
« Num dos suplementos do Expresso de hoje, o filólogo brasileiro Evanildo Bechara, que desatrema no acordismo, diz que "Fernando Pessoa não aderiu à Reforma de 1945". Não aderiu nem deixou de aderir: morrera dez anos antes. O que Pessoa nunca aceitou em vida foi a reforma ortográfica de 1911. Mas o desatino foi impresso assim mesmo, sem pudor do académico nem emenda do entrevistador.»
Bruno de Oliveira Santos, «Jornalismo de referência», in Jovens do Restelo, 20/X/12.
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