Perante a notícia de o Brasil estar para pôr a aboborar até 2016 ou 2018 (e depois se verá) a infame açorda ortográfica de 1990, bem parece que a História se repete (ou que certa espécie de gente não leva emenda): em 1915 o Brasil decidiu aceitar a reforma portuguesa da orthographia, de 1911, e negou o propósito em 1919; em 1931, um «acôrdo», já (um que determinava que mãe se havia de escrever mãi), negociado entre as academias das Sciencias de Lisboa e Brasileira das Letras, deu em nada em 1935, no Brasil, com uma desculpa política qualquer; em 1945 novo «acordo» (já sem acento diferencial), passado a lei em Portugal e no Brasil, deu com os burrinhos na água no congresso brasileiro em 1955 debaixo de clamores contra o colonialismo português e contra a mineração do ouro no tempo do Senhor D. João V (!). Não parece ter ocorrido aos empolgados congressistas que a melhor linhagem dos colonos exploradores de ouro era a sua própria ali, no congresso...
E a história é esta: Portugal põe-se generosamente (servilmente é ultimamente melhor termo) de acordo com o que o Brasil procura quanto à escrita do seu próprio idioma (seu próprio, de Portugal) e o Brasil sempre a dar-lhe e o burro a fugir, numa esquizofrenia incapaz de algum dia tolerar o pôr-se de acordo com Portugal porquanto isso representa avivar-lhe a identidade portuguesa. No Brasil padecem dum trauma de identidade, por isso vede-los às arrecuas a escoicear a História. Que Portugal se preste recorrentemente a este logro é estulto, além de inglório. – Parece-me que há portugueses, também, que se iludem com vagos fumos de império como essa palermice da «lusofonia» e que julgam sublimar, hoje, com acordos ortográficos, uma espécie de glória imperial que não se atrevem (ou nem se dão conta) de confessar. E com isso vejo que quem se mais inebria nestes fuminhos da lusofonia são justamente uns toleirões que condenam ou renegaram a nação pluricontinental. – Assim sendo, pois, não estranheis o resultado triste e catastrófico destes negócios ortográficos: dementes e inimputáveis poderiam alguma vez ser parte capaz de tratar com proveito de negócios sérios? Melhor foram os portugueses, apenas por si, sem se tornarem tributários de terceiros, tratarem com autoridade e boa regra da sua Grammatica nas quatro partes da Etymologia, Syntaxe, Prosódia e Orthographia ensinando-a aos seus filhos e vindouros e a quem na mais aprender quisesse. Os que soberanamente o assim não aceitassem, paciência! Que se trabalhassem de então livremente fabricar a Gramática que coubesse à sua linguagem. Uma coisa se daria com isto, notai: o idioma português seria naturalmente um, e só um – aquele que os portugueses regessem. Se mais não fôra, evitar-se-ia o tristíssimo espectáculo duma República dita portuguesa, imbecilmente voluntariosa e ingénua, a perder-nos em acordos ortográficos sucessivos consigo própria, de jure e de facto como se vem a ver com Portugal amarrado sozinho a cada acordo rasgado pelos brasileiros, e sem atinar com uma regra ortográfica decente nem coerente no diário oficial.
E que já leva 101 anos nisto!
Imagens: José Vicente Gomes de Moura, Compendio de Grammatica Latina e Portugueza, 6.ª ed., Coimbra, Imprensa da Universidade, 1850; Diário da República, 2.ª série - N.º 198 - 12 de Outubro de 2012.
(Texto revisto.)
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