Quinta-feira, 1 de Agosto de 2013

Os intendentes do caco gráfico

 Os srs. deputados da intendência ao desatino ortográfico (Grupo de Trabalho para Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico foi o nome prolixo que arranjaram) lá espremeram o sumarento desconchavo em duas dúzias de páginas. Doze audições a acorditas e seis audiências a gente mais avisada deram nuns parágrafos a retalho atamancados à pressa antes de fecharem a tabanca para férias. Aí temos um relatório assim-assim. De quem vem não houvera de esperar melhor coisa. Vale o relatório desde logo de exemplo da cacografia  em vigor por não ser nem deixar de ser em «acordês»; é nisso, pois, retrato fiel do que muitos avisaram mas uns quantos mais modernaços não quiseram saber. Dos 71 erros que lhe contei de português, umas dezenas lhe teria de apontar na mesma se seguisse eu o «acordês». Se falta dela houvesse, aí está a prova do caos ortográfico instalado.
 Hei-de ir trocando cá o relatório por miúdos mais adiante. Agora entretenho-me a catar-lhe umas alcagoitas meias salgadas e deveras peremptórias no ponto 5 -- Aplicação do Acordo. Convém salientá-las, justamente por virem preto no branco onde vêm: num relatório oficial dos srs. deputados à Assembleia.
 O vocabulário ortográfico comum (V.O.C.) previsto no tratado do Acordo Ortográfico (art. 2.º) é uma miragem. É oficial e agora está escrito: havia de ser elaborado pelas Academias Portuguesa e Brasileira com a colaboração de instituições doutros países, mas tal nunca aconteceu (p. 19). Ainda assim, sucede que perante tão assertiva expressão do descaso do clausulado essencial do próprio Acordo vêm a diante os srs. deputados dizer irracionalmente, após um sintomático enunciado de vocabulários extravagantes, que o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrou internacionalmente em vigor em Janeiro de 2007 (p. 21) !...
 Os extravagantes vocabulários e dicionários foram sendo publicados avulsos por este e aquele a despeito da letra do Acordo. É assim que achamos todos à uma, à procura de abocanhar o maior quinhão do negócio dos dicionários e dos livros da escola. Se os deixam, trincam-se uns aos outros como canibais.
 É como a coisa vai. Os srs. deputados dizem-no, mas dar-se-ão conta da gravidade?

  •  A Academia Brasileira apresentou uma nova versão do V.O.L.P. em 2009 [em que] não foram consultados especialistas portugueses. (A xenofobia não mora lá, são só eles que se bastam a si mesmos no que respeita ao meu idioma...)
  • Da mesma maneira o Vocabulário Ortográfico do Português (V.O.P.) do I.L.T.E.C. foi oficial em Portugal por necessidade premente do responsável da área cultural  XVII.º governo enquanto escoiceava o presidente da Academia das Ciências de Lisboa, por lei o órgão de consulta do governo em matéria da língua. (Como a lei é caprichosa à mão de certas bestas...)
  • Soma-se o vocabulário da Porto com orientaçao científica do Professor João Malaca Casteleiro (coisa nunca antes vista na Academia das Ciências), obra com mais de cento e oitenta mil vocábulos da variante europeia [se a 'europeia' é variante, onde se achará então a matriz do português?] e, ainda, mais de cinco mil vocábulos  próprios do português do Brasil, assim como africanismos, asiaticismos e galeguismos, nomes próprios e topónimos. (Topónimos não são nomes próprios?!)

 Uma miríade de instrumentos de trabalho, ou vocabulários sem nada em comum senão que todos juntos não fazem um de jeito, pelas incoerências do postulado acordita, por erros ou disparidades na sua interpretação, por desgarradas soluções ad-hoc em que cada um e todos são génios a inventar a roda. De repente há uma série de filólogos saídos de debaixo das pedras andando para aí à toa, é o que é.
 A jusante de tudo, o famigerado Lince decepa a esmo e a eito o português e divorcia, com aval do Estado, qualquer autor dos seus próprios textos. E os srs. deputados fazem-lhe a (in)devida publicidade, não sei se se deram conta: o Lince é uma ferramenta de apoio à aplicação do A.O. que permite uma rápida adaptação às novas regras. Regras que lhes é indiferente serem boas ou nefastas, nem tão pouco que alguém as aprenda ou não. Importa é encomendarmo-nos todos ao grande timoneiro Lince financiado pelo Fundo da Língua Portuguesa e disponibilizado gratuitamente para todo o país, e fazermos colectivamente a revolução cultural. -- Como pode todavia sair gratuita ao país uma coisa  financiada por quem é não entendo eu.
 Entretanto (ou finalmente) o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (I.I.L.P.) está a elaborar o V.O.C., com uma previsibilidade [i.é, uma possibilidade de previsão] para finalização do trabalho em 2014. Porém, já houve atrasos, o que pode indiciar que não esteja pronto nessa data. -- Não disse eu que a previsibilidade era uma possibilidade de previsão? Cá está. -- Soma-se que o financiamento do I.I.L.P. secou por calotes vários e consta que o maior é o do Brasil. Isto os srs. deputados omitem. O que preferem dizer é que Angola acabou de financiar os recursos [financiar os recursos?!...] para finalizar o Vocabulário Ortográfico Comum.
 Quer a final dizer que será em 2014 que vamos ter cuanzas kwanzas a valer no português?... -- Foi desta profecia que o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrou internacionalmente em vigor em Janeiro de 2007 ?!...

(Carta devolvida hoje.)

Escrito com Bic Laranja às 19:10
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11 comentários:
De Luar a 3 de Agosto de 2013
Se eu tivesse visto antes....
De Bic Laranja a 3 de Agosto de 2013
É guardar para a D.G. das contribuições e impostos.
Cumpts.
De [s.n.] a 3 de Agosto de 2013
Passo diàriamente e até mais do que uma vez, por esta ilustre casa à procura de novidades temáticas. Neste caso específico, de cada vez que aqui venho e olho para os dizeres na "carta devolvida por mau português", sorrio e volto a sorrir, sinceramente. Gabo-lhe a paciência (sem ironia), mas sobretudo felicito o seu sentido de oportunidade. Será único, suponho, nesta empresa mais do que patriótica.
Maria
De Bic Laranja a 3 de Agosto de 2013
Paciência seria contemporizar. Não havia de ser o único, é pena.
Os cuidados em que me vejo de me espezinharem o ser, morreria deles se não reagisse. Ou sou português ou sou português. Tertium non datur.
Cumpts.
De [s.n.] a 4 de Agosto de 2013
Admirava-me é que os responsáveis dessem alguma importância às suas - a par das de muitos milhares de portugueses - indignadas e justíssimas reclamações. Mas lá diz o povo, água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

Na verdade essas suas palavras (acertadíssimas) no envelope devolvido, por uma associação d'ideias fizeram vir-me à memória algumas estrofes de uma canção famosíssima do Elvis, as qais, com ligeiras laterações, bem podiam ser as inseridas no envelope:

"...

(... then
early this morning
(I) They got my letter back)
...
(She)I wrote upon it
Return to sender
Address unknown
No such number
No such road...

---------
Maria

De [s.n.] a 4 de Agosto de 2013
Na realidade e mais concretamente: "They got THEIR letter back"...
Maria
De Bic Laranja a 5 de Agosto de 2013
De Galizes a 3 de Agosto de 2013
Quanto à pergunta "onde se encontra a matriz da Língua portuguesa?" a resposta é: a matriz encontra-se em Portugal, pois a "variante" a que se referem é que é europeia e não portuguesa. Há uma variante a que chamam "brasileira" e não sul-americana, no momento em que houver outras variantes não serão 'africanas' ou 'asiáticas', mas, sim, com a designação do gentílico de cada país de Língua portuguesa. Então, por que será que a forma de escrever ou falar a Língua portuguesa em Portugal precisará de ter o epíteto de "europeia"?
De Bic Laranja a 3 de Agosto de 2013
Não precisa, aí está.
Todavia, se o bem entendo, só há uma variante europeia da matriz portuguesa se o português for variante de si.
Está bom de ver que não tem sentido.
Nem tem sentido sequer aplicar esse epíteto de variantes. Há português e mais nada. Com subsídios de muitos idiomas e dialectos naturais em toda a extensão geográfica onde é falado.
O chamado português brasileiro é um dialecto (são vários mas...) a caminho dum crioulo (ou vários, especialmente na boca do povo e bênção de certos nacional-socialistas tropicais). Em se emancipando (que é dizer em se não conformando à gramática do português) ter-lhe-ão de pôr algum nome, pois que português já não será (a menos que dos trópicos nos esbulhem o nome do idioma também; ele já faltou mais, com o beneplácito da corja que tomou de assalto Portugal).
Esta mania de os brasileiros escreverem à sua maneira sem se conformarem à dos portugueses é um problema deles. Sempre foi. Se está mal resolvido por que hão os portugueses de ter de o resolver (que não se resolve)?
Cumpts.
De Inspector Jaap a 6 de Agosto de 2013
Ora aí está, simples e eficaz, como sempre e como tudo o que tem conteúdo; o drama é que ele há postulados de base que certos cérebros não conseguem compreender e pronto! E nós é que temos que gramar isto; sem o fulgor intelectual do caro Bic, eu também participo na resistência com a minha modesta contribuição, e também tenho a certeza de que tal é extensivo a muitos portugueses dignos desse nome, alguns dos quais serão nossos irmãos de armas neste quartel que é o seu blogo, e em que nos preparamos para a batalha final; eu, por mim, NUNCA desistirei de me considerar português na minha terra; esses malditos párias é que estão cá a mais; ai que pena a lei do aborto não ter entrado em vigor há uns anos; tenho a certeza de que muitos deles nunca teriam nascido.
Calorosos cumprimentos
De Bic Laranja a 6 de Agosto de 2013
Obrigado!

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