« Em frente de um dos mais modernos hotéis da cidade, uma multidão ululante assistia ao espectáculo que um oficial belga, descalço e em cuecas, era obrigado a oferecer, para gáudio de todos. No meio de pauladas e coronhadas, tinha que caminhar sobre um arame farpado estendido ao longo da rua. Cada vez que colocava um pé fora do arame, choviam pontapés e pauladas. Se caísse, estava perdido...
Mas, junto do "Bac", a estação da jangada que atravessava o rio Zaire e ligava Leopoldville com Brazzaville no ex-Congo francês, as coisas estavam bem piores. A partir do cais de embarque, estendia-se uma longa fila de fugitivos belgas. A travessia do rio fazia-se com irregularidade e ao sabor da vontade do "Comandante du Bac". Soldados congoleses, alguns dos quais perdidos de bêbados, entretinham-se a pilhar os poucos haveres que essa pobre e aterrorizada gente procurava levar consigo. Qualquer tentativa de resistência ao roubo era castigada com terrível brutalidade. Volta-não-volta, sacavam uma das mulheres ou rapariguinhas, arrastavam-na para fora da bicha e, num casinhoto de madeira e zinco, junto do rio, violentavam-nas. Os maridos, pais, ou parentes, eram mantidos na bicha sob a ameaça das armas, e os mais recalcitrantes ficavam estendidos no chão, depois de uma chuva de coronhadas...
Regressei ao aeroporto de N'Djili, depois de uma viagem de meter medo, por uma estrada atravancada de toda a espécie de veículos […]»Eduardo Alexandre Viegas Ferreira de Almeida, «A D.T.A. e os acontecimentos no Congo ex-belga», Quarenta Anos de Aviação, Martins & Irmão (impressor), 1995, p. 195.
Comemora-se por aí agora o comunista Álvaro Cunhal. A propaganda deste «herói» anda a ser levada às escolas...
Falemos então nós de heróis.
À debandada dos belgas do Congo sucedeu-se o caos. O sofisma internacionalista da O.N.U. àcerca do direito dos povos à autodeterminação, sem condições próprias de desenvolvimento demográfico, económico, cultural, técnico e político que se vissem, servia bem era aos americanos, aos soviéticos e a internacionalistas do Terceiro Mundo, na justa medida da sua gosma em gadanharem a seu proveito os recursos de territórios que lhe não pertenciam. Tal sofisma fomentou na prática a guerra sob a capa dos direitos humanos, mergulhando os gentios no pior tribalismo e os colonos na selvajaria hedionda de que o relato na primeira pessoa, acima, conta um mero episódio.
Ciente da barbárie que se instalara no Congo e do perigo que corriam os portugueses ali, procurou o Governo português por intermédio do Governo Geral de Angola, e com os parcos meios da Direcção de Transporte Aéreo (D.T.A) da província, evacuar portugueses e belgas que queriam fugir do Congo. Com dois aviões Dakota de 28 passageiros, um governo congolês hostil e carradas de boa vontade tentar-se-ia uma ponte aérea de 560 km entre Leopoldville (Kinshasa) e Luanda. Uma ponte aérea que salvaria umas duzentas pessoas por dia, se tanto.
Poucos se salvariam. Seria frustrante.
Uma alternativa que naturalmente se pôs foi a de evacuar antes os refugiados de Leopoldville para Brazzaville, na outra margem do rio Zaïre, mas seria necessária autorização do presidente do Congo francês, o abade Youlou, e toda uma preparação de acolhimento aos refugiados. Foi neste passo que entrou em cena o eng.º Jorge Jardim como agente, ou «observador», do Governo de Lisboa, mas que para afastar eventuais contratempos havia de ser oficialmente apresentado como comissário de bordo da D.T.A. Diz-nos o Cte. Eduardo Ferreira de Almeida que a sua coragem, calma, e frio raciocínio em situações particularmente difíceis, mereceram o nosso respeito e admiração. Não é fácil entender como tanta coragem pode caber num homem!. Conta-nos que o eng.º Jorge Jardim, depois de aterrar em Brazzaville, procurou onde era o palácio do Governo e…
« … desandou. Só e a pé.
Foi até lá, e perguntou à sentinela se Monsieur le President estava. Como lhe respondesse que sim, que estava no seu gabinete, agradeceu e... entrou. Perguntou onde ficava o gabinete de Son Excellence Monsieur le President. Diseram-lhe que no 1.º andar, ao fundo do corredor, e ele... subiu.
E acabou por ser recebido pelo famoso Abade Youlou!
Exposto o problema, logo teve a garantia de total apoio da parte do governo congolês. Quando regressou, já veio montado num jeep militar, guiado por um garboso oficial da Casa Militar da Presidência. Daí em diante, tudo girou a velocidade incrível, e em poucas horas o Liceu [de Brazzaville] estava apto a receber os primeiros refugiados!»Idem, p. 196.
Para completar a operação conseguiu o eng,º Jorge Jardim, sabe-se lá por que meios, repor a funcionar o Bac, a jangada que ligava Brazzaville a Leopoldville através do rio, e fazer sumir do caminho os cafres congoleses que seviciavam os fugitivos de Leopoldville na bicha para a jangada. Como conseguiu esta proeza e também a necessária autorização (ou tolerância) no Congo belga à ponte aérea entre Leopoldville e Brazzaville, isso não nos conta o narrador desta estòrinha porque nunca o soube.
A ponte aérea veio ao depois a ser completa de Brazzaville para Luanda com concurso dos Super Constellation que os T.A.P. mandaram.
Foi desta maneira, segundo li noutro herói desta história (João Augusto Graça, «A descolonização do Congo ex-Belga», 2005), que os portugueses tiraram do Congo muitos dos seus e alguns dos belgas a preço humanitário, quando a Sabena o fazia pelo preço da tarifa aérea normal e sem nunca se arriscar em zonas perigosas, como Luluabourg (Kananga), na região diamantífera da Forminière, a mais de 500 kms da fronteira de Angola.
Prima para ler...
Estes portugueses mai-los seus esquecidos feitos no nosso mundo português vêm contados na primeira pessoa nos Quarenta Anos de Aviação do aviador português Eduardo Alexandre Viegas Ferreira de Almeida, um livro modestamente subtitulado pelo autor como as minhas estòrinhas. É uma obra que me chegou ao conhecimento pelos bons auspícios do sr. António Fernandes, a quem agradeço. Divulgo-o hoje aqui porque não convém nada que se ofusquem os verdadeiros heróis quando os holofotes da propaganda se propõem encandear-nos.
Dakota CR-LBL, Luanda, 1975.
John Wegg (via Rold Larsson), in The Dakota Association Of South Africa.
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