Sábado, 7 de Maio de 2016

A idade do armário e Os Maias

Eça, Os Maias — (c) 2016


  No tempo em que as paulas eram ùnicamente paulas e as cristinas singelamente cristinas, e em que uma Paula Cristina fôra estranho caso que me apareceu, a ponto de me cultivar no neo-realismo de Namora, confesso, não tinha vontade nenhuma de ler Os Maias. Mais me parecia outro daqueles livros chatos que havia de ler para escola. Sucede porém que Os Maias tinham carácter mais necessário que o Trigo e o Joio mai-la Paula Cristina por junto e, como tudo o que é e não pode deixar de ser, vi que me não livraria da sarna que me havia de calhar. Congeminei sublimar a necessidade de ler Os Maias e o desprazer de tal obrigação como a uma mente assim atormentada pôde parecer: com subterfúgios dum viciante fascínio e viva curiosidade ganhas pela escrita antiga do Português, mas de que só cheirara vapores  em autos vicentinos, na lírica medieval do 10.º e nas maravilhosas páginas do Livro das Armadas estampadas na História do 8.º ano do Pedro Almiro Neves:

 No Anno de 1500 — Partio Pedralvz. cabral pera a Jndia ẽ 9 de Março por capitão mór de treze vellas &c.

Armada de Cabral, 1500 (in Livro das Armadas)

 

 Ocorreu-me que num alfarrabista — cuja existência descobrira com meu amigo Jaime na feira da Ladra, logo lá resgatando por uns módicos 200$00 um velho e desconjuntado Diccionario da Lingua Portugueza de Fonseca e Roquette, impresso em Pariz no anno de 1863 — num alfarrabista, portanto, talvez pudesse achar impresso na orthographia antiga que me fascinava, a obra que por imperativo escolar estava condenado a ler. Vai daí e, não sei já como — a conselho do meu imão ou sugestão do Jaime —, desaguei certa tarde na Barateira da Trindade (que a voragem do tempo levou e o deus dos livreiros haja; e à Sá da Costa, e à Portugal...) onde me vi meio perdido, meio ansioso, de nariz no ar olhando as estantes carregadas de velhos livros. Foi assim que por lá descobri um volumezinho em meia inglesa esgatanhada, maçado do uso, miolo escuro do tempo e a cheirar ao velho a que ainda agora cheira, mas ainda assim firmemente cosido, sem se haver de desconjuntar. Era só o primeiro volume. Porém, ponderado o preço — 250$00 —, cabia perfeitamente na contia que levava na algibeira. E satisfazia-me no principal: não dizia a data mas, logo de entrada, vi que o «sombrio casarão de paredes severas» que era o Ramalhete, era nas Janellas Verdes. Janellas! Não cuidei de mais e paguei-o; o segundo volume talvez se houvesse de achar, quisesse a Fortuna...

  O caso foi que, no liceu, Os Maias que eu desencantara destoavam sensacionalmente. Enquanto os meus pares carregavam (os que carregavam) a insípida edição dos Livros do Brasil, a um conto de réis o volume e ortografia vulgar, eu possuia uma curiosidade typographica com «philosophia», «bric-a-brac» e... «hespanholas»; entre o grego, o afrancesado e, bom, o resto... resolveram os colegas que a minha edição d' Os Maias parecia uma Bíblia. E assim ma baptizaram.

  Sucedeu ao depois nesses dias da bíblia queiroziana que fui catequizado: Eça, afinal, não era nada, nadinha enfadonho como a chateza neo-realista dos Esteiros (7.º ano), dos Novos Contos da Montanha (8.º) ou do Trigo e o Joio (9.º, mai-la Paula Cristina). Livrei-me dum trauma juvenil e dum preconceito ignorante (mas ninguém nasce ensinado) da literatura portuguesa. Claro que para completar a leitura tive de me contentar com um segundo volume meio desirmanado do primeiro que já havia; arrematei menos mal uma sexta edição em capas de brochura, de 1923, que mais tarde mandei encadernar numa tipografia da Fonte Nova em Benfica e que não ficou nem bonito, nem feio, nem barato... — A orthographia, porém, era a do tempo de Eça; não destoava do primeiro volume e era o que me importara desde o início.

Eça, Os Maias — (c) 2016


  Ontem, por nada, peguei nestes volumes para me pôr à coca da edição do primeiro deles. Nunca a pude identificar porque lhe falta o rosto. O que me moveu a comprá-lo foi o devaneio que já contei. Do que valoriza os livros só muito mais tarde tomei melhor noção. Sem folha de rosto (a única que lhe falta) tomei nota das «obras do mesmo auctor» no verso do anterrosto e do n.º de páginas (458) a ver no que dava. Bem que as edições das obras indicadas possam ser anteriores à 1.ª ed. d' Os Maias (1888) — a edição refundida d' O Crime do Padre Amaro é de 1876; a Reliquia é de 1887; só a 3.ª ed. d' O Primo Bazilio e a 2.ª do Mandarim é que não soube... — descartei logo ali a hipótese de possuir a 1.ª ed. pois o registo bibliográfico da Biblioteca Nacional de Lisboa dá 456 págs. ao primeiro volume dessa 1.ª edição. Sucede, em tanto, que o acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa há um exemplar da 1.ª ed. d' Os Maias que pertenceu a Fialho de Almeida. Esse exemplar tem cópia pública na B.N. digital e a última página do primeiro volume está numerada com... Adivinhai!

Eça de Queiroz, Os «Maias: Episodios da Vida Romantica», [1.ª ed.], Porto, Chardron, 1888.
Eça de Queiroz, Os Maias: Episodios da Vida Romantica, [1.ª ed.], Porto, Chardron, 1888.

Escrito com Bic Laranja às 20:15
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