Vasco Santana, Fado do Estudante.
A Canção de Lisboa (Cottinelli Telmo) 1933.
Este naco d' A Canção de Lisboa é um primor de graça. Já ouvi intelectuais modernos rebaixar o antigo cinema português ao patamar revisteiro, mas vede a ironia: o humor é do mais refinado, obra de espíritos elevados capazes de elaborar boa comédia. A comédia hoje é ele haver histriões arvorados em intelectuais...
Carlos ser plural é brilhante; quando o às vezes digo a brincar com algum Carlos as pessoas estranham, ficam inexpressivas, sem entender. — Calhando é de eu não ser nenhum Vasco Santana, mas que Car-los é plural não haja dúvida. Já o meu velho amigo Jaime, porém, engraçava mais era com aqueloutra tirada dos «bigodinhos para pendurar balões». Visse ele uma bigodaça daquelas (ou nem tanto) nalguém lá lhe saía a tirada — «Ena! Bigo... bigodinhos para pendurar balões.» — E aquilo é que ríamos, enquanto os de bigodes se quedavam como aqueles outros meus ao ouvirem do Car-los. E ríamos sempre do filme inteiro, sem nos nunca cansarmos de lhe achar graça nem de lhe admirar o espírito.
A cena tem três tempos — Vasquinho da Anatomia, com os copos, arma uma cegada dos diabos; os morras ao fado compõem-se com tiradas espirituosas e hilariantes contra os fadistas, as guitarras, contra o dono do retiro, contra o público e, por cúmulo de absurdo, contra sabe-se lá o que mais: «o fado é o veneno da raça», «matam-se os guitarristas, arrebentam-se com as violas», «eu sou médico, tenho obrigação de curar as chagas de carácter social», «há para aí tantas semanas, porque é que se não organiza a semana antifadista?», «um por todos e todos contra o fado».
«Vantagem de cá», pois.
De permeio as interjeições são duma graça e dum lugar comum popular que infelizmente se hoje já não ouve: — «Chiu, cale a boca, pela sua rica saúde. Você não vê que estão aqui os meus fregueses?»
E o freguês: — «Ó homem isto é de mais, homem!» — E outro: — «Não há direito!» — E a freguesia toda: «Fora! Fora!»
«Vantagem de lá». Foi corrido. — «Põem-me fora mas é porque eu quero» — e — «Vais para a rua que é uma beleza».
Triste, só e abandonado, porém, deixa-se logo ali embalar nas «variações de fado, em ré menor, pelo pelo distintíssimo guitarrista, o... nosso amigo polidor» (se Ti Alfredo era fadista e era marceneiro, este «distintíssimo», sendo só guitarrista, não havia naturalmente de passar de polidor, não é verdade?...) O fado do estudante faz então ponte a um corolário; são os fados cumprindo-se: a rebeldia estulta da mocidade amadurece. Os cartazes anunciam então já o «médico fadista», ainda a caminho de ser doutor, mas artista de «grande atracção», «o célebre cultivador» [cultivava-se para ser doutor?], «inexcedível» «no já célebre Fado da Febre Tifóide»; enfim, «rei dos fadistas», a «maior glória do fado», o «maior cantador do mundo» servido nas soirées elegantes a par do «melhor arroz de frango».
Humor fino.
E moral da história: só bêbados que nem cachos têm desculpa para maldizer o fado.
Podemos ver de novo?
Adamastor (O)
Apartado 53
Bic Cristal
Blog[o] de Cheiros
Carmo e a Trindade (O)
Chove
Cidade Surpreendente (A)
Corta-Fitas(pub)
Dragoscópio
Eléctricos
Espectador Portuguez (O)
Estado Sentido
Eternas Saudades do Futuro
Fadocravo
Firefox contra o Acordo Ortográfico
Fugas do meu tinteiro
H Gasolim Ultramarino
Ilustração Portuguesa
Kruzes Kanhoto
Lisboa
Lisboa Actual
Lisboa de Antigamente (pub)
Lisboa Desaparecida
Menina Marota
Meu Bazar de Ideias
Paixão por Lisboa
Pena e Espada(pub)
Perspectivas(pub)
Planeta dos Macacos (O)
Pombalinho
Porta da Loja
Porto e não só (Do)
Portugal em Postais Antigos(pub)
Retalhos de Bem-Fica
Restos de Colecção
Rio das Maçãs(pub)
Ruas de Lisboa com Alguma História
Ruinarte(pub)
Santa Nostalgia
Terra das Vacas (Na)
Tradicionalista (O)
Ultramar
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.