Uma notícia (notícia!?...) de há mais de um ano (que digo? Dois anos e meio) requentada hoje à hora do almoço num telejornal (nem sei que canal) espelha a infantilidade e define bem os horizontes desta civilização de subúrbio. Uma escola (escola?!) na mata do Choupal; um conceito pseudo-pedagógico a rasgar limites e convenções (deveras moderno!…) Um «projecto de educação» de jardim-infantil, de criancinhas dos 3 aos 5 — e não me refiro só aos educandos — em que no fim é tudo plastificado; das educadeiras (que bem se vê nunca cresceram, aprendizes que são da Escola Superior de Educação) à brincadeira certificada por trilhos de catálogo: o «caminho das poças», «o caminho dos escorregas», o caminho directo para a casa e outras opções […] O pilar básico das práticas que aqui se desenvolvem é a livre exploração, o brincar livre.
Ah, o brincar livre! Santa conformidade ao pilar básico das práticas!...
Lembra-me eu com isto das terras, do convento, do túnel da bruxa, mundo de aventuras e de lições vividas antes e depois da escola primária (que era só meio dia): numa vez podíamos ir descobrir as três pontes, que eu via da janela da minha mãe, e voltarmos a casa passadas horas, depois desses descaminhos — alguns mais meninos da mamã acabavam por apanhar da mãe ou da avó, raladas de não saberem dos bijous uma tarde inteira; noutra vez lá estavam à mesma, a descobrir o Broma, a Salgada, as Conchas, as Conchinhas, a Maruja, os Alfinetes, a Madre de Deus, Xabregas, os Toucinheiros ou a Amorosa, por carreiros, calçadas, azinhagas, matas, barrancos, escaladas; tanta vez a dar em púrrias, como invasores de domínios alheios; tanta vez (já os tempos mudavam) corridos simplesmente à pedrada. Os mais crescidos, que já conheciam todos os trilhos e lugares de aventura passavam o «seu» território aos mais novos, com orgulho, e assim seguia a exploração do mundo sem nunca acabar. Até que veio a civilização de subúrbio a cavalo na modernidade e acabou-se.
Agora cresce-se só em estufas e brinca-se apenas por catálogo.

Ponte da Salgada, Marvila — © 1990-91
De Valdemar Silva a 11 de Março de 2018
A rapaziada de Arroios não chegava a tão longe.
Íamos jogar à bola para um descampado pelado na Quinta dos Peixinhos e quando ganhávamos, os putos Damas já faziam parte do grupo, havia corridas à pedrada até quase à Alameda.
Mas, tudo é composto de mudança.
Cumpts.
Valdemar Silva
A rapaziada de Arroios trazia de avanço meio século de aburguesamento (uma forma mais clássica de suburbanidade). Progressos da I República.
O resto (os Peixinhos &c.) são reminiscências da revolução industrial ainda a chegar à II República.
Da mudança hoje nem sei que diga. De tal maneira ela se processa pelas mentalidades.
Cumpts.
De [s.n.] a 11 de Março de 2018
Que engraçado trazer este tema à baila. A fazer-me lembrar outros tempos e as terríveis traquinices que os meus irmãos pequenitos praticavam quase diàriamente. Creio que já o abordou anteriormente. Ou não?
Os meus irmãos eram uns terroristas de primeira. Acho que também já aqui contei estas suas peripécias. Como então só havia aulas da parte da manhã, as tardes eram para algum estudo e as horas restantes para irem brincar nas trazeiras das casas, nos quintais e terraços, e fazerem as maiores malandrices que se pode imaginar.
Como havia trazeiras em todos os prédios e no nosso também, era justamente nas várias trazeiras das casas, todas elas com grandes quintais e/ou terraços enormes, que eles as praticavam. Atiravam pedras às janelas dos vizinhos, tudo na brincadeira, depois algumas pedras, ao desviarem-se do alvo, acertavam numa ou noutra cabeça... e lá ía o pequenote para o posto médico fazer o respectivo curativo. Quando o caso não era grave.
Mas por vezes era grave - naquele tempo os pais eram severos quanto a punir os desacatos que os filhos-rapazes praticavam e caso fizessem estragos nas janelas dos vizinhos (e estes chamavam sempre a polícia) havia tareia da grossa à noite, quando os pais regressavam do trabalho - casos houve em que, sobretudo o mais crescidinho dos meus irmãos, de facto o mais terrível, por várias vezes o nosso Pai teve que o ir buscar à Esquadra! Eu era a mais pequenina deles todos e aquelas cenas faziam-me uma confusão dos diabos e ainda me lembro delas como se fosse hoje.
O nosso Pai, que educava os filhos com todas as regras do civismo e do respeito pelo próximo, não suportava tanto terrorismo e falta de respeito pelos vizinhos. À noite, quando o Pai chegava para jantar e a Mãe contava as malandrices que os filhos tinham praticado durante o dia, bem, quem me lê hoje nem acredita no que sucedia!, o Pai pegava na "menina dos cinco olhos", grossa e pesada e estava sempre ali à mão para ser usada e era-o dia sim dia não..., e dava uma boas reguadas em cada mão nesses dois meus irmãos (o mais velho apanhava por tabela, por ter praticado actos censuráveis mas também por não ter impedido o irmão mais novo de os praticar.
Naquela altura já morávamos na Avenida Alm. Reis, perto do Areeiro e os eléctricos subiam e desciam a Avenida. Alguns miúdos tinham o péssimo hábito de se pendurar nos eléctricos por brincadeira e uns, para não serem apelidados de medricas, imitavam os primeiros e faziam o mesmo. Um dia um dos meus irmãos levou um empurrão doutro miúdo mais brutinho e ficou com o pé debaixo da roda trazeira do dito.
Claro que foi logo para o Hospital e por lá ficou uns dias. Felizmente que só perdeu um dedo. Escusado será dizer que por se ter tratado de um caso tão grave, com resultados que podiam ter sido fatais, desta vez o nosso Pai lá o privou das reguadas da praxe... e nem podia ter sido doutro modo. Mas que ficou zangado por o filho se ter pendurado no eléctrico, o que nunca devia ter feito, com as péssimas consequências que tal acto originou, lá isso ficou...
O nosso Pai era muito rigoroso com a educação dos filhos e não admitia desrespeito de qualquer espécie em relação aos mais velhos nem ao próximo. Por isso mesmo foi um extraordinário Pai cuja formação moral superior, através de ensinamentos cívicos e morais ao mais alto nível, foi transmitida tal e qual a cada um dos seus filhos.
Isto era o que acontecia com os miúdos, os mais rebeldes, daqueles tempos:) Imagine-se o que seria hoje se os pais dessem reguadas aos filhos por estes praticarem desacatos nas janelas dos vizinhos e outras traquinices do estilo..., de certeza que os 'serviços de protecção de menores'... retirariam imediatamente esses filhos aos pais indo depositá-los numa qualquer instituição do Estado!
E nesta ficariam a apodrecer até à idade adulta, com consequências psicológicas gravíssimas, como acontece a muitas crianças que hoje são retiradas aos pais pelas razões mais fúteis e mesmo ilegais, como é do conhecimento de todos nós.
Maria
São saudades. À parte algumas consequências mais desaforunadas, os ermos além da nossa cidade de há mais ou menos 50 anos eram territórios de aventura e exploração. E a cidade aquém também, com campainhas para tocar, elevadores para subir e descer, eléctricos para a pendura e ruas do lá vai um para jogar à bola.
Hoje têm de ser só estufas, certificadas e acreditadas pelo governo. Se não, lá vêm as assistentes sociais.
Nós outros servimos para pagar.
Cumpts.
De Valdemar Silva a 12 de Março de 2018
Parece que as reguadas não produziam o efeito desejado, o mano partia à pedrada os vidros das janelas das vizinhas e até perdeu um dedo a andar à pendura nos eléctricos.
Valdemar Silva
De [s.n.] a 12 de Março de 2018
Olhe que produziram o efeito desejado, sim senhor... mas de facto não por muito tempo. As traquinices estavam-lhes na massa do sangue, como soe dizer-se e repetiram-se até terem atingido a pré-adolescência, altura em que adquiriram outros interesses, praticar vários desportos e sobretudo jogar futebol, hábito que se prolongou por muitos anos com alguns intervalos pelo meio devido às profissões de cada um deles.
Este meu irmão (o mais velho, aquele que era mais terrorista!), muito mais tarde e depois de uns anos sem praticar o seu desporto favorito, voltou a jogar por amadorismo num clube dos arredores de Lisboa por adorar futebol e também para se sentir bem fìsicamente. E muito mais tarde, depois de anos de trabalho e bem antes de se reformar voltou a jogar futebol nas horas vagas por amor a este desporto e também por se sentir bem com esse exercício físico.
O amor por este desporto foi transmitido pelo nosso Pai a todos os filhos e filhas (estas nunca lhe ligaram muito, diga-se em abono da verdade...), pois durante os seus estudos em Coimbra praticou-o sempre e fê-lo até ter terminado os estudos. E pela vida fora nunca mais deixou de ser um fanático por futebol e já adulto pelo seu/nosso adorado Sporting:) clube pelo qual sempre foi um adepto incondicional ainda em Coimbra e de certeza absoluta por influência do Visconde...
Para que se veja o jeitaço que o meu irmão tinha como jogador, o clube onde jogava nas horas vagas foi várias vezes jogar ao estrangeiro e, por exemplo, em Itália perante o jeito que ele tinha para a bola e também pelo seu aspecto físico, comparavam-no a um tal "Simone" (os colegas de cá pronunciavam Simoni) que jogava num clube lá do sítio e que parece ter sido muito bom jogador e fìsicamene era igual ao meu irmão. Foi assim que ele ficou a ser conhecido tanto lá como cá, no clube onde jogava.
Não admira que o meu irmão passasse por italiano, eu própria também parece que me assemelho a elas (o dono deste espaço sabe do que estou a falar;-).
Uma vez em Londres, estava eu a correr para apanhar o metro e um rapaz italiano, estudante, segundo me revelou, põs-se a correr ao meu lado e sai-se com esta "lei italiana?" Uma simpatia de rapaz e muito educado, caso contrário nem nunca lhe responderia.
Ficámos amigos e chegámos a trocar correspondência durante algum tempo, quando eu já tinha regressado a Portugal. E tem piada isto das parecenças, a minha filha também passa perfeitamente por uma italiana e por sinal é bem bonita!
Maria
De [s.n.] a 13 de Março de 2018
Que disse eu?, reguadas em ambas as mãos?, disparate! Palmatoadas é que devia ter escrito.
O processo inacreditável de punir alunos, meninas e rapazes, com reguadas, era praticado durante a Instrução Primária e aplicado em todas as escolas públicas sempre que os alunas/os não soubessem de cor a lição ensinada na véspera.
Nos rapazes talvez se admitissem esse género de castigos, porque naqueles tempos a maioria deles era incorrigível (nesta democracia tanto elas como eles são muito piores...) e talvez necessitassem deles para acalmar as fúrias. E não creio que os encarregados de educação se preocupassem grandemente com o facto, pelo contrário até os aprovariam, visto que havia rapazes verdadeiramente incorrigíveis. E é bom lembrar que, contràriamente aos dias de hoje, a escola de então também servia para formar o carácter da miudagem e ensinar as regras da boa educação e do civismo e do respeito pelo próximo.
Coisa que hoje, como se sabe, não acontece e isso é consequência directa das novas regras introduzidas no País pela excelsa democracia com um único objectivo, deitar por terra todos os processos educativos exemplares, tidos então como os correctos para formar adultos conscientes dos seus deveres para com a Sociedade. Numa palavra, era um ensino que servia também para fazer dos futuros adultos pessoas sérias, respeitadoras, íntegras e honestas.
Eu fui dois anos para a escola pública por estar perto de casa e porque o meu Pai conhecia a professora. Não gostava nada dela nem das suas atitudes ríspidas e menos ainda das reguadas que via a professora dar numa ou outra colega e que provocavam um autêntico terror em todas as alunas e disse isto ao meu Pai. Remédio santo, os dois últimos anos da primária fí-los numa escola particular.
E havia outro pormenor que analizado à distância de muitas décadas considero ter sido um erro do sistema educativo de então: não ter em conta a idade inadequada das professoras do ensino primário e do liceal ou secundário, como agora se diz. Da Primária ao Liceu todas as senhoras tinham bastante idade, com raras excepções. O que não sucedia nas escolas e nos colégios particulares.
É minha opinião que devido à idade avançada de muitas professoras, elas perdiam a paciêcia e a vontade de ensinar a miudagem e de lhes explicar o que necessitava ser explicado, como era sua estrita obrigação.
O completo oposto do que mais tarde para minha imensa felicidade fui encontrar tanto nos últimos anos da primária como depois no Externato, onde graças a Deus fui encontrar professoras novas simpáticas, acessíveis e com métodos de ensino excepcionais.
O que quis dizer quanto ao método adoptado pelo nosso Pai para castigar as diabruras e travessuras dos meus irmãos, era dar-lhes palmatoadas nas mãos e não reguadas, visto que o instrumento usado era uma palmatória e não uma régua, Santo Deus!
Subconscientemente devia estar a pensar nas temíveis reguadas que vi a professora dar a duas ou três colegas. Pobres miúdas.
Maria
Nota: quando referi no meu anterior comentário "por influência do Visconde", queria dizer "por influência do Visconde seu grande amigo"
De gato a 13 de Março de 2018
Maria,
Excelentes testemunhos de Vida. E que não são só aplicáveis à sua.
A educação passava pela responsabilização. No seu caso, o 'mais velho' era quem aprendia a ser responsável. E isso ficava para toda a vida. E não criava complexos de qualquer tipo.
Éramos afastados do mal, da mediocridade, dos enxovalhos sociais futuros.
Cumprimenta
De [s.n.] a 13 de Março de 2018
Completamente verdade, Gato. Concordo em absoluto. Obrigada pelas suas palavras.
Maria
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